Manabu Mabe, da figura á abstração

Por:  Enock Sacramento
“A vida era dura no cafezal. Trabalhávamos seis dias por semana, inclusive aos sábados. Meu pai respeitava minha inclinação para a arte, mas deixou claro que o trabalho no cafezal era prioritário, que dele dependia o sustento da família numerosa. Por isso, eu só pintava aos domingos e nos dias em que chovia.” A declaração é de Manabu Mabe e foi feita em 1995, numa tarde de outono, quando dialogamos longamente sobre sua vida e sua obra em sua ampla casa da rua das Canjeranas, no bairro de Jabaquara, em São Paulo.

Mabe era então um profissional da pintura com carreira amplamente desenvolvida, o mais importante artista da abstração informal no Brasil. Alegre, jovial, atencioso, amava a arte e a vida. Para seu amigo e vizinho Wakabayashi, ele foi “um exemplo raro, entre os japoneses de sua geração, que não teve a experiência da guerra”. Estava no Brasil no período e, por isso, após o cessar fogo, não se retraiu: conservou a expansividade e a alegria e as expressou em sua arte.

Mabe sempre teve uma relação especial com a beleza. De certa feita, afirmou: “O belo surge diante de mim cada vez maior e mais amplo”. Com efeito, ele tinha uma visão singular da vida. E uma capacidade notável de transformar experiências vividas em matéria pictórica. O vermelho dos frutos do cafeeiro, o verde das folhas, o marrom dos troncos, o azul do céu e o roxo da terra paulista reaparecem em suas telas em manchas que remetem ao gesto preciso do samurai ou à movimentação do agricultor que colhe e peneira café. Inquirido sobre o que a pintura representava para ele, nos respondeu: “Para mim, arte é brigar e brincar ao mesmo tempo. Brigar com as tintas, com as formas, com as cores e com as texturas; e brincar com elas ao mesmo tempo”. Para Mabe, o belo surge do embate entre a reflexão e a ação, entre o tristitia e a laetitia (alegria), como acontece no barroco.

O jornal Nihon Keizai Shimbum, do Japão, havia publicado, pouco antes, uma série de textos autobiográficos do artista, reunidos posteriormente no livro “Chove no Cafezal”. As duas publicações tornaram Mabe um dos imigrantes japoneses mais conhecidos e admirados em seu pais de origem. O livro teve, em seguida, uma edição brasileira, o que ajudou a sedimentar seu forte prestígio junto à comunidade japonesa de São Paulo, a maior do mundo fora do Japão.
Mabe fez seus primeiros desenhos muito cedo, ainda no Japão. Emigrou com a família para o Brasil aos 10 anos de idade, dirigindo-se para fazendas de café, no noroeste do Estado de São Paulo. Morou em Birigui, Guararapes e Lins, onde chegou, em 1940, com 16 anos de idade. Aos 18, morando na Colônia União, pensou pela primeira vez em tornar-se pintor. Na época, fazia desenhos com creiom que trouxera do Japão e paisagens com aquarela. Com 21 anos, entra em contato com a tinta a óleo, com a qual começa a pintar sobre papelão. Recebe então do fotógrafo Teisuke Kumassaka, que havia estudado pintura em São Paulo e no Rio de Janeiro, orientação no que diz respeito à preparação da tela, à diluição das tintas com terebintina e óleo de linhaça. Dois anos depois, conhece em São Paulo o pintor Tomoo Handa, do Grupo Seibi, e, em seguida, o pintor Yoshiya Takaoka, participante do Grupo Quinze. E, assim, Mabe foi se integrando ao ambiente artístico, tanto de Lins como de São Paulo, para onde se mudou em 1957.

Em 1950, Mabe iniciou trajetória artística excepcional, participando de exposições do Grupo Guanabara, do Salão do Grupo Seibi, do Salão Paulista de Arte Moderna (no qual conquistou a Medalha de Ouro em 1958), do Salão Nacional de Arte Moderna, da Bienal de São Paulo (1953 e 1955) e da Bienal de Tóquio. Mas foi em 1959 que sua estrela subiu às alturas.

Esta exposição destaca pinturas e desenhos realizados por Manabu Mabe nos primeiros 15 anos de seu percurso artístico. Inclui desde naturezas mostras criadas em 1945, na Colônia Aliança, em Lins, até um desenho e uma obra abstrata produzida em 1959, “the year of Manabu Mabe” segundo a revista Time.
Por que 1959 foi cunhado como o ano de Manabu Mabe? Foi nele que o artista se projetou internacionalmente ao participar de coletivas na França, Alemanha, Áustria e Estados Unidos, conquistando um Prêmio Aquisição no Dallas Museum of Fine Arts e dois prêmios na Bienal de Paris (Prêmio Braun e Bolsa de Estudos). No Brasil, realizou nesse ano sua primeira exposição individual numa galeria do circuito comercial, a Barcinski, do Rio de Janeiro; participou do 8º Salão Nacional de Arte Moderna (Prêmio Isenção de Júri); do 8º Salão Paulista de Arte Moderna (Prêmio Governador do Estado); Prêmio Leirner de Arte Contemporânea, na Galeria de Arte das Folhas; e da V Bienal de São Paulo, na qual conquistou o Prêmio de Melhor Pintor Nacional, recebido das mãos do presidente Juscelino Kubitschek. Em 1959, Mabe produziu uma série notável de pinturas, aqui representadas por uma obra emblemática – “Ilusão de Azul”- que ele deu de presente a Aldemir Martins, um de seus amigos mais próximos. Em 1978, Mabe realizou importante exposição itinerante no Japão. O avião que transportava suas obras de volta ao Brasil caiu no Oceano Atlântico. Mabe perdeu no desastre, 61 obras importantes de sua coleção pessoal. Vendo o amigo desolado, desfalcado de obras importantíssimas de sua lavra, Aldemir devolveu a Mabe o presente, com dedicatória.

Esta exposição documenta o período de transformação da linguagem pictórica de Manabu Mabe, da figura em direção à abstração, tendência que marcou a arte brasileira no final dos anos 50 e que teve na obra do pintor sua representação mais consistente.

Na segunda metade dos anos 50, Manabu Mabe criou uma pintura abstrata que começou influenciada pelo geometrismo de representações estrangeiras das primeiras Bienais de São Paulo e de artistas construtivos brasileiros, e que evoluiu para um abstracionismo gestual muito pessoal, que concilia vigor e delicadeza, oriente e ocidente, apolíneo e dionisíaco. Trata-se de obras belíssimas, corajosas, determinadas, frutos maduros de uma sensibilidade privilegiada, verdadeira orquestração de cores que permeia a sonoridade íntima da música de câmara e a grandiosidade de uma sinfonia.

Enock Sacramento
Curador da exposição

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