“CRIATIVIDADE", mal infantil.

Por:  Radha Abramo
Sempre ouvimos que o brasileiro é criativo, que, mesmo sem os meios adequados , do nada, consegue uma criação extraordinária, o que seria absolutamente impossível no Primeiro Mundo. A criatividade tupiniquim vence todas as barreiras. O pior é que nos ufanamos disso.
Impingiram-nos a justificativa da criatividade para disfarçar a incapacidade profissional e ocultar incompetência. A palavra criatividade já está gasta de tanto abuso: é empregada para qualificar tudo, da obra excepcionalmente bem realizada à que não merece sequer um olhar vadio. Quando alguém não faz seu trabalho com competência damos-lhes a desculpa de que o profissionalismo inexistente ou depauperado é substituído pela criatividade emergente. E, no caso de um produto, do teatro à publicidade, do cinema às artes visuais, não suscitar a indulgência da crítica, esta, para salvar a honra ou aliviar a culpa, consagra-o com o rótulo fácil de obra criativa. A “criatividade” cresceu tanto nas últimas décadas que passou a justificar a besteira , desculpar a ingenuidade e frequentemente perdoar a desonestidade, esta sim bastante criativa.
O termo criatividade, como é usado e abusado entre nós, ganhou o significado de um insulto. O vício da leitura mal digerida, a pouca cautela na adoção de métodos, a apropriação irrefletida de trabalhos estrangeiros não comprovados no Brasil, criaram um sério equívoco. Se todos os títulos de obras estrangeiras relativos à criatividade no Brasil fossem submetidos a uma crítica severa, se verificaria que nos países onde se produzem essas fascinantes regras e esses encantadores conceitos as coisas vão mal, apesar da abundância de sugestões para as crises da cultura. A tentativa de descentralização da cultura do governo Mitterrand, na França, por exemplo, é um furo nágua; as atividades artísticas nos bairros de Paris, são, quando existem, insípidas, e o povo prefere ficar em casa vendo TV. O programa das Casas de Cultura de André Malraux (governo de Gaulle) também não tinha relação com a realidade que veio depois: ou essas Casa acabaram como tantos outros Beaubourgs (como no Havre), ao custo de milhões de dólares ou, como na periferia de Paris, acabam sujas  e vazias, sem atividade cultural alguma, servindo ao menos – é verdade – para abrigar reuniões de minorias raciais. E assim imitando os outros, acabamos fazendo deste País um País de excepcionais. Damos vôo à imaginação , repetimos conceitos alheios, e alheios à nossa realidade.
Como pode haver criatividade sem que o portador desta possua o conhecimento adequado e o adestramento técnico, fatores fundamentais, meios básicos do produto cultural? A criatividade implica profissionalismo. Sem saber falar, como se pode juntar palavras para exprimir alguma coisa?
A criatividade, tal qual é concebida e invocada, é uma faca de dois gumes: exerce autoritarismo, porque alimenta esperanças artísticas no produtor cultural incompetente e tranquiliza o sistema. Enquanto a criatividade for uma tábua  de salvação para a incapacidade, os governosse distanciam cada vez mais de suas obrigações didáticas prioritárias, e tapa a boca dos contestadores, proclamando que  o brasileiro é criativo e que por isso não precisa , por exemplo – e menciono apenas um caso – de um laboratório de teatro na USP. Os alunos suplantam as dificuldades técnicas, são criativos: podem, portanto, depois de formados, exercer as funções de iluminadores, de figurinistas, de cenaristas, embora não tenham passado de leitores atentos de bons livros.
Como explicar, senão pelo álibi de “criatividade”, como a mais importante universidade da América Latina não tenha um laboratório de teatro,  o laboratório de cinema, um laboratório de artes visuais? Como explicar isso, se ao mesmo tempo verbas escandalosas são destinadas a atividades culturais sem retorno, a exercícios amadorísticos e a subatividades, tudo isso para atender o clientismo congênito já tratado aqui em artigo anterior (Folha de São Paulo, 13 de junho de 1984)? Em país de cegos, parece ser esta a norma aceita, precisamos de doutores, não de técnicos profissionais.
Grande parte das escolas de todos os graus, com exceção de algumas , não tem laboratórios mesmo que improvisados. Mas são agraciadas com uma coisa chamada Educação Artística, aulas construídas pelas abnegações dos professores e pela “criatividade” imanente deste povo excepcional. A lei que introduziu a Educação Artística nas escolas é canhestra: não se produz em dois anos um professor polivalente para dar essa matéria complexa. E não há material, não há instrumentos adequados. Tudo custa caro, tudo é difícil, embora os professores missioneiros (mas não os “criativos”, pelo amor de Deus) procurem dar algum sentido real às suas aulas.
Sem exercício técnico e sem um número suficiente de professores capacitados, essa aula de Educação Artística se torna um insulto. É justamente nessas aulas que a bobeira da criatividade começa a aparecer, desviando os jovens para o amadorismo inconsequente e fazendo-os escorregar na falsa noção do fazer artístico. Recursos humanos são precários no Brasil e a persistência dessa precariedade corresponde à ideologia de um sistema.
As metas da Educação e da Cultura deveriam ser interligadas, para instaurar no País uma pedagogia da cultura. Sem profissionais competentes não há desenvolvimento, nem cultura, nem educação E por falta de uma crítica da realidade, por exemplo, o Museu de Arte Moderna do Rio pegou fogo e assim se queimou uma coleção de obras respeitáveis, porque não havia gente capaz de dizer que era importante  manter a revisão dos extintores contra incêndios.
Um museólogo não se faz na esquina, ou por decreto, ou por gentil nomeação, ou ainda por atenciosa, mas criminosa, ação entre amigos. Um museólogo, um responsável por instituição cultural, se faz na escola, na prática do trabalho técnico específico. Sem profissionalismo se faz uma mostra como ade Flávio Carvalho na última Bienal de São Paulo, ao preço de gordas quantias para o seguro das obras, para jogá-las num mezanino sem informações  didáticas necessárias ao entendimento da polivalência desse grande artista brasileiro.
E tomem cuidado os criativos que vaticinam os ‘museus abertos’ para a cidade,  museus que não sejam os  “ortodoxos sarcófagos da arte”. A literatura sobre museu participantes e que tais existem somente nos Congressos que se atulham de  “papers”, depósito de sonhos desprovidos de senso de realidade.
Conheço, diria, a maioria dos mais importantes museus do mundo e nenhum deles defende para si próprio a condição de museu fechado ou aberto. São museus, simplesmente. São dirigidos por profissionais competentes. Tanto a Tate Gallery quanto Beaubourg ou o Museu de Arte de São Paulo atraem e aglutinam quantidades consideráveis de visitantes porque tem técnicos especializados para todos os trabalhos. Museu aberto é aquele feito por profissionais capacitados, que respeitam o público, dando-lhe a prioridade didática e a informação  compreensível sobre as programações realizadas.
Depois que Aracy Amaral assumiu a Pinacoteca do Estado, o museu se abriu para o público, embora existisse há muito tempo. A avenida Tiradentes, antes conhecida apenas como a avenida do Presídio, passou a avenida da Pinacoteca.
O Brasil precisa de recursos humanos, precisa de profissionais capacitados, precisa de equipamentos culturais (metas prioritárias na pauta da Secretaria da Cultura de São Paulo), precisa enfim de uma política cultural cujo objetivo fundamental seja o da pedagogia da cultura. Só assim nos salvaremos da moléstia da “criatividade”, fruto do autoritarismo que consagra a incompetência para alijar os produtores da cultura da criação real, mantendo-os na eterna dependência estrangeira, submetidos aos favores das relações fortuitas, subordinadas a uma crítica também ela “criativa”.
O que é preciso é  desmistificar esse conceito errado de criatividade. Esta emergirá somente a partir do profissionalismo e da competência técnica. Não se pode pôr a carroça adiante dos bois, pois esta não andará, ou seja, não haverá desenvolvimento cultural. Liberdade de criar implica escola, laboratórios, técnica, e depende da consciência crítica também do produtor cultural, a primeira grande vítima da falsa noção de criatividade imposta à nossa cultura.

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