Norberto Stori

CRÍTICA
As Paisagens de Norberto Stori
A paisagem é um gênero praticado por Norberto Stori desde o início de sua carreira. Iniciada na década de 1970 esta trajetória notabiliza-se pela fidelidade constante e incisiva a este gênero pictórico marcada, entretanto, por uma produção que tem uma evolução e um desenvolvimento bastante peculiares.
A origem desta trajetória se dá por volta de 1972, com uma série intitulada Apocalipse da Paisagem, um conjunto de desenhos em nanquim com grafismos soltos e nervosos e acentuadamente ondulados. Nestas obras a paisagem urbana contrapõem-se a paisagem rural e natural de São Paulo. A seqüência dá-se com a série intitulada Pasárgada, de 1975, e caracteriza-se pelas paisagens simbólicas, também em bico de pena e composta com linhas retas, verticais e horizontais, como que acentuando o geometrismo da paisagem urbana. O título indica uma busca de um lugar ideal, lugar este que será enfatizado na série chamada de Águas de Março (1974-75), na qual a paisagem urbana e natural, ainda em bico de pena mas com a presença da têmpera, aponta para uma busca de origens.
O ano de 1976 marca uma virada na obra do artista. Neste ano participa de um projeto no Rio Grande do Sul, intitulado I Encontro Nacional de Artistas Plásticos, na cidade de Bagé. Desta viagem resulta inúmeros cadernos de anotações, os diários do campo, e um conjunto de obras intitulado Cabanha do Portão. O resultado desta experiência junto a imensidão da paisagem rural gaúcha caracteriza-se pelo abaixamento considerável do horizonte, pela ênfase numa perspectiva intuitiva e fortemente visual, caracterizada pela presença incisiva dos céus. É uma série com nítida influência das paisagens flamengas e holandesas e na qual o discurso e a forma articulam-se de modo justo e preciso.
Esta série é de paisagens reais, caracterizada pela união do grafismo (herança das fases anteriores) e pela pictorialidade. As folhas de papel recebem as linhas e as camadas líquidas de aquarela como registros atentos de uma observador cuidadoso ocupado tanto em captar a imagem do real quanto em traduzir o sentimento de imensidão característico da paisagem pampeana. É um momento privilegiado na carreira do artista, momento no qual as questões técnicas e temáticas de sua obra passada encontram um eixo e possibilitarão o enorme desenvolvimento posterior de sua arte.
As séries seguintes se sobrepõem: Caminhos, de 1976 a 1988, ocupa-se em registrar as viagens, são anotações de paisagens nas quais o artista deleita-se em fingir ser um artista viajante, ou seja, obras nas quais a emoção une-se a preocupação documental. É a fase que inaugura uma característica que se desenvolverá nos anos subsequentes, a da aquarela pictórica.
Na seqüência vem a série intitulada Paisagens Interiores. Aqui muita coisa muda: ao invés do traço miúdo e detalhista os gestos largos e nervosos, no lugar do pitoresco a emoção intensa. Esta série executada entre 1985 e 1989 caracteriza-se pela nítida assimilação das características do expressionismo alemão. Isto é notável não somente pela aparência e forma dos trabalhos mas, principalmente, pela absorção do espírito romântico, no que este tem de telúrica e humanista. Estas paisagens interiores são menos representação e mais pinturas puras.
A série que se segue, intitulada New Age, traz já no seu título o indicativo da acentuada preocupação humanista do artista. Os gestos longos e calmos em imensas horizontais constróem as paisagens de sonhos. Tudo é controle e domínio sem haver lugar para indecisões ou imprecisões. Notável é a variação radical de formatos: as mini aquarelas, de 2,5 X 3,0 cm estão lado a lado com as imensas imagens, de 160 x 240 cm. Dois modos de olhar: o olhar agudo e incisivo nos mini formatos e o olhar imerso na imensidão nas grandes imagens.
A continuidade se dá com Sirius, série iniciada no começo da década de 1990, que se caracteriza pelo uso do papel colorido como suporte. Conforme depoimento do artista “Os papéis com cores fortes como o azul, vermelho, marrom, verde, apresentam novas dificuldade técnicas a serem vencidas. As sugestões de luzes e reflexos são conseguidas por traços ou manchas com pigmento branco correndo sobre a tinta úmida.” Mantendo a liberdade de invenção esta série, entretanto, recupera as referências do real, as “vistas que ficaram em nossa memória”, segundo Stori. Como culminação deste período, caracterizado por um grande investimento no pictórico (iniciado em 1985 com as Paisagens Interiores), o artista, afirmando sua vocação para a pesquisa, desenvolve, na seqüência, uma nova série. Caracterizando-se por serem, a um só tempo, escuras e luminosas, as obras deste grupo, intitulado de Noturnos, radicalizam o seu processo pictórico ao buscar retratar, conforme o artista, “as noites com seus mistérios, suas luzes e reflexos”.
Atualmente o artista trabalha uma nova série intitulada Crepúsculos na qual as sugestões de lugares são “vistas em um vôo livre panorâmico, criados com manchas em aguadas e pontos sugerindo luzes e reflexos, no lusco-fusco do entardecer ou amanhecer.” Mantêm-se ativo o pintor e, mais precisamente, mantêm-se em evidência, o pesquisador, sempre buscando novas possibilidades, investigando novos modos e propondo-se novas dificuldades.
Um processo ininterrupto feito em obras: entre 1972 e 1976 a paisagem de Norberto Stori caracteriza-se basicamente pela intensa subjetividade, pelo grafismo acentuado executado com nanquim e pelos formatos médios. É uma paisagem na qual o ver estar intrinsecamente associado ao sentir, uma construção de caráter retórico que enfatiza tanto a busca de uma linguagem pessoal quanto a busca de uma eixo temático afinado com sua sensibilidade. A série iniciada no Rio Grande do Sul, em 1976, abandona o subjetivo pela observação do real. Os grafismos unem-se ao pictórico nos formatos médios dos papéis. O nanquim associa-se a aquarela para dar conta das observações. Aqui o artista que anteriormente via e sentia é substituído pelo artista que observa. O produto, derivado desta experiência de observação, permitirá o salto para a abstração do real. O grafismo, com seu caráter de registro e escritura, cede espaço ao pictórico. Os suportes diversificam-se e os formatos tanto crescem quanto diminuem. O espectador de suas obras é totalmente submergido nos grandes formatos ou, ao contrário, convidado a deter-se na pequenez da miniatura. Em ambos os casos a variação intensa sugere que o artista busca a sua e a nossa imersão total no sensorial.
Uma trajetória notável a deste desenhista, aquarelista e professor mas, antes de tudo, deste paisagista. Alguém para quem o mundo exterior existe, mas existe para ser reconstruído em valores, em grafismos e em cores. O paisagista olha, observa e registra, tudo o que todos podem ver mas, principalmente, o que só ele pode ver: a profundidade e a intensidade dos estados de alma. Retratos da natureza e retratos do homem, este fisicamente ausente de sua obra, mas intensamente presente em emoção.
 
Paulo Gomes
Porto Alegre, Fevereiro/Junho de 2004.
* Artista Plástico, pesquisador e curador independente. Doutor em Artes Visuais pela UFRGS.