José Zaragoza - em memória

JOSÉ ZARAGOZA. Nasceu em Barcelona, em 1930. Dedicou-se às artes a partir dos 14 anos, quando começou a frequentar a Escola de Arte para Jovens, dirigida pela professora Angela Rosado. Dois anos depois, em 1946, ingressou na Escola de Artes e Ofícios, também em Barcelona. Aos 18 anos candidatou-se à Escola de Belas Artes La Lonja, ainda em Barcelona. Foi aceito depois de submetido ao teste de capacidade em desenho e gravura. Trabalhou na Gráfica Manen, criando ilustrações para contos, cartazes de cinema, capas de livros, etc. Obrigado a fazer o serviço militar, teve de suspender os estudos, contra a própria vontade e a dos professores da escola. Em 1952, revoltado com a situação política da Espanha, sob o domínio de Franco, e também por ter perdido dois anos de estudos das belas-artes, decidiu-se a vir para o Brasil. Aqui, começou a fazer ilustrações para anúncios, além de trabalhar como designer. Retomou a pintura, participando de duas exposições na Galeria Prestes Maia e na FAAP – Fundacão Armando Alvares Penteado. Também participou de três Bienais de São Paulo, da 2ª Bienal de Havana, em Cuba, e do 2º Prêmio Probel, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Fez exposições em Paris, Nova York, Barcelona, Madri, Roma, Lisboa, Londres, Haia, Ludwigshafen (Alemanha) e em Tóquio e Shizuoka (Japão). Expôs nas mais importantes cidades brasileiras. Fez, ao todo, 59 exposições. Em 1999, enfrentou o desafio de fazer um longametragem sobre São Paulo, Até que a Vida nos Separe, e pretende, ainda, dirigir um novo filme, que promete gerar bastante polêmica. José Zaragoza faz parte da diretoria do Museu de Arte Moderna de São Paulo e da Sociedade de Cultura Artística.
 
CRÍTICA
 
Zaragoza – Convite à inteligência.
 
Balzac (1799-1850), em “A Musa do Departamento”, lembra: “Quando todo mundo é corcunda, o belo porte torna-se a monstruosidade”. Essa idéia se faz muito presente na arte contemporânea, quando crítica e público costumam reagir mal ao artista que não apresenta uma unidade em seu processo de criação. Não seria uma das características mais interessantes da arte contemporânea, justamente, a possibilidade de encontrar artistas que se abastecem das mais distintas fontes, gerando uma diversidade de resultados surpreendente e, ao mesmo tempo, cativante? O desafio, então, seria encontrar na “monstruosidade” o “belo porte”, para verificar onde a multiplicidade converge. A obra plástica de José Zaragoza, cuja revisão de 50 anos de arte ocorreu em novembro/dezembro de 2005, no Museu Brasileiro da Escultura, em São Paulo, promove justamente esse debate. Nascido em 1930, na Espanha, Zaragoza, quando chegou ao Brasil, em 1952, já tinha na bagagem estudos na Escola de Belas Artes da sua cidade natal e uma primeira exposição em 1947. Daí por diante, seu trabalho percorre diversas facetas, sempre mantendo o poder de inventar e de gerar indagações no observador. Suas obras dos anos 1950, por exemplo, entre as quais se destaca o retrato da irmã, Conchita, trabalham o óleo sobre tela de uma maneira que evoca os mestres do gênero. Há, ali, a busca pela humanidade a cada traço. Não se trata, apenas, de dominar a técnica, mas de atingir a essência daquilo que se retrata. Essa procura se aprofunda nos anos 1960, só que, como mostra o retrato “Monique Grávida”, os tons escuros ganham a companhia de uma estruturação imagética que evoca o cubismo, principalmente alguns retratos de Picasso, com sua habilidade toda especial de tratar a composição de imagens humanas. Ainda nos anos 1960, dois momentos se destacam. A pintura “Ponte” talvez seja uma das melhores que o artista já realizou. Há nela elementos do conhecimento técnico clássico e de modernidade, na forma do acabamento e na maneira de tratar o tema. Ao se contemplar o resultado, fica claro que aquilo, pelo trabalho realizado, não é mais uma imagem, mas sim um trabalho pictórico da melhor qualidade. O mesmo caminho surge na série de crianças praticando diversas atividades, como brincar com bola, pular corda e rabiscar. Aliás, essa última ação, Zaragoza continua realizando com vigor, sempre em busca de respostas plásticas a indagações internas. Após essas obras, em que a densidade se faz muito presente e que geraram, inclusive, uma exposição na FAAP, em 1963 – a primeira individual do artista –, Zaragoza deu uma guinada para enfrentar um novo desafio: trabalhar com o branco. Isso significava não só enfrentar o pânico da tela limpa, mas, acima de tudo, verificar as possibilidades estéticas de uma cor que era, em diversos aspectos, o oposto do que havia feito até então, ou seja, o trabalho com tonalidades mais escuras. Nos anos 1970, surge uma nova e interessante idéia. Com títulos extraídos de colunas sociais de Tavares de Miranda, como “Tim-tim”, a produção plástica de Zaragoza torna-se plena de ironia ao status quo e mostra como as grandes corporações, preocupadas com elas mesmas e com indivíduos de terno e gravata escura, decidem, com rostos maculados à Francis Bacon, os destinos do mundo. Retomando o humanismo do início da carreira, nos anos 1980, os retratos imaginários do artista são um ato de amor à pintura. Isso se torna bem evidente em “Velho Ator”, pois a temática é resolvida plasticamente, sem pieguice ou lirismo fácil, mas com consciência do que significa pintar um retrato no século XX, ou seja, a incorporação das técnicas do passado e, simultaneamente, a busca de soluções próprias. Nesse sentido, a imagem de Caio de Alcântara Machado, de 1976, é essencial. Há nela muito da pintura européia, mas também de cores vinculadas à brasilidade. A extinção do rosto e o trabalho com as linhas e manchas do corpo criam uma realidade dinâmica e emotiva. Em se falando em impacto e presença do coração nas telas, isso ocorre, com grande expressividade, na série “Não Matarás”, de 1986. Pessoas sendo torturadas, e/ou encapuzadas, são desenhadas de maneira bastante livre, em papel kraft, acentuando a habilidade do artista e a sua capacidade de criar estados de espírito e de transmitir a agonia de almas. Seja nos “Retratos Imaginários” ou nos trabalhos mais engajados politicamente, subsiste o mesmo talento de transmitir emoção pelo uso dos mais variados materiais. Em 1989, os trabalhos em que retira as cores da bandeira brasileira, ou cria mapas paulatinamente escurecidos e devastados de sua alegria e verde, mostram a pátria brasileira, por um lado perdendo as suas florestas, mas gerando, paradoxalmente, uma grande obra plástica. Os trabalhos de Zaragoza costumam impressionar em termos de tamanho e de capacidade de propiciar novas leituras. É o caso das séries “Windows”, de 1989, e “Chaves”, de 1995. Elas integram objetos do cotidiano ao trabalho do artista. A primeira apresenta o universo urbano dos prédios, sob diversos ângulos e cores, com esquadrias móveis servindo como molduras. Estabelece-se, assim, um universo lúdico, em que a ação de abrir uma janela significa estar de frente a edifícios com infinitas luzes por andar, solucionadas com pinceladas precisas e vigorosas. As chaves geram já um outro efeito. Muito mais importante que o seu simbolismo mais evidente – de abrir/fechar caminhos existenciais – é a impressão plástica de vê-las colocadas umas juntas a outras, ou nas mais variadas combinações, sempre a alertar que são objetos apropriados por um artista plástico e não mais chaves do mundo cotidiano. As janelas e chaves, quando nas mãos e na mente de Zaragoza, são renovadas. Propiciam um caminho até para uma maior compreensão da arte pelo observador, obrigado a ver cada trabalho como a realização imagética de um projeto estético, mas não por isso frio ou desumano. Planejamento, nesse caso, significa coerência artística na busca de elementos motivadores para dar o melhor de si mesmo em cada experiência técnica ou temática. É o caso de “Yellows”, de 2001, onde o universo do amarelo é explorado, assim como ocorrera com o branco, há três décadas. Ampla experimentação com materiais rege um universo em que o uso da tinta e de elementos naturais, como grãos de arroz, convive com o sentido maior da obra de Zaragoza: o inconformismo com as próprias possibilidades. Como apontava Balzac, “o belo porte” está, muitas vezes, onde muitos não sabem encontrá-lo. Zaragoza revela-se um perito na habilidade de surpreender e maravilhar pela diversificação. Sua “monstruosidade”, em 50 anos de arte, está na capacidade de não oferecer respostas e de indagar, tanto na temática como na técnica, a inteligência do público de maneira mais ou menos sutil – mas sempre essencial e contundente: “Quem sou eu? Quem é você? Aceite encarar esses desafios e partilhe comigo uma viagem pelas nossas inteligências!”
 
Oscar D’Ambrosio,
jornalista, é mestre em Artes Visuais.