O fotógrafo e sua máquina super dotada

Por:  Luiz Ventura
ESQUETE TENDO POR TEMA O COLONIALISMO CULTURAL
LUIZ VENTURA
 
“Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza. E o direito de sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. 
                                                                   Boaventura de Souza Santos

PERSONAGENS:
Zeca – pintor, cerca de 30 anos.
Alemão – fotógrafo, cerca de 40 anos.
Época: final dadécada de 1970
 
CENÁRIO: oficina de pintura de artista que cria quadros de forma racional, usando telas, pinceis, espátulas e tintas, com uso de cavalete.
 
 
 
Zeca (ao telefone) –… isso mesmo… sim, amor, marquei… é o Alemão, deve estar chegando… me foi indicado pelo Magaldi que… não, não sei o nome dele, é de Santa Catarina, loiro, razão que levou ser chamado de Alemão… querida, é muito bom fotógrafo, super recomendado… Combinamos… me deu orçamento, posso pagar em duas vezes… certo, olhe amada, fique descansada, ele é muito bom profissional, vi fotos tiradas por ele. Não… não se preocupe, olhe, um carro estacionou, deve ser ele, tenho que desligar,. Certo… prá você também, querida… beijo, tchau.
 
(Zeca abre a porta)
 
Alemão – Boa tarde… (aponta para o Zeca como que inquirindo) Zeca?

Zeca
– Sim, vamos entrando… espere, vou ajudá-lo.

Alemão
– Não é preciso. Tenho prática, sempre carrego tudo sozinho.
(O Alemão, com uma mala muito grande e um sem fim de tralhas, entra na oficina como se fora um príncipe. Ajeita tudo num canto, se cumprimentam apertando as mãos. Apontando o painel)
 
- É esse o painel?
 
(O Zeca confirma com gesto. O Alemão olha o painel com cara de fiscal na feira, se estica e se encolhe na ponta dos pés, igual a elástico e, mãos postas)
- Muito bem, o painel está no lugar ideal. Não vamos mexer em nada. Você tem tomada 110?

Zeca
– Tenho, bem atrás de você…
 
Alemão(Com ligeireza o Alemão arma toda a tralha de luz, testa o fleche, mede a luz com fotômetro enquanto fala)
Em atelier é tudo fácil, uma moleza. Você não imagina o que é fotografar nas entranhas da terra em Goiás, aquela cavernice terrificante, um oco sem fim.

Zeca
– Posso imaginar por um documentário que vi faz…

Alemão
– Foram oito mil fotos, sim senhor, só numa delas.
Cara, já fiz mais de cem mil fotos por este mundão do Senhor – da Mesopotâmia a Miríades, de Pinatubo a Santo Antão dos Aflitos e Penitentes.

Zeca
– Impressionante, muita pintura?
 
Alemão – Uma infinita grandiosa imensidade, cara. Na semana passada terminei o registro dos 753 soberbos quadros da fase abstrato-ecológica do magistral Nestor Mitsubishi, genialmente pintados no primeiro semestre deste ano. Série linda, de título primoroso: Metaphysical Eternity.
 
Zeca – Mais de setecentos… se-te-cen-tos num semestre? Esse número está certo?

Alemão
– O cara é um gênio, um puta gênio, cara. Ele montou uma equipe de assistentes de primeira linha e o mais impressionante: é muito rápido no gatilho, vai certeiro logo de cara. Cinquenta telas, do rico acervo do Metrocorps, seguem para o badalado Centro Pompidou, em Paris.

Zeca
– Inacreditável. Fico impressionado como as coisas se encaixam entre certos “artistas” e determinadas instituições famosas…

Alemão
– Ontem fiz as fotos de um inefável painel do temperamental Ghrajola: Lunar Simphony. Veja que obra curiosa, à primeira vista, apenas uma tela toda branco-neve que desperta a atenção por estar, aparentemente, em branco.
Uma obra intrigante, cara; ao observador atento, super antenado, porém, é dado notar que bem no meio da tela foram retirados um fio da urdidura e outro da trama. O fio horizontal foi tingido de branco-vertigem e o vertical de branco-ócio, com anilinas importadas de Madagascar… veja bem que barato, tintas de Madagáscar, cara… e recolocados em seus lugares, de modo a formar uma singela cruz e quatro retângulos absoluta e milimetricamente iguais.
 
Zeca – Fico imaginando o invejável desse tal branco-ócio a combinar com a possível evanescente fragilidade do branco-vertigem, em contraste com o gélido branco-neve da tela.
 
Alemão – Só vendo mesmo, cara, você, em poucas e bem pensadas palavras disse tudo, é difícil de imaginar, mais difícil ainda descrever tanta sutileza e sofisticação. Observe ainda o detalhe, o cuidado… o desvelo… o carinho do artista reconhecidamente detalhista: a soma dessas unidades dá sete; pensou? O número sete, cara, um número sabidamente telúrico. O painel vai, merecidamente, para o idolatrado MoMA de Nova Iorque.
 
Com gestos largos, com muito de toureiro e outro tanto de mágico, abre a malona de onde ergue um bom pedaço de feltro carmesim, descobrindo, assim, a hiper-super câmara de tripla potenciação e sua grande angular de distorção zero em ângulo de até 567 graus. Beleza pura. Contempla por instantes, fascinado, a jóia da engenharia nipo-germano-americana aninhada em seu estojo inviolável. Com amor retira a câmara e a parafusa, delicadamente, no tripé colocado a um passo do painel. Em êxtase, encaixa a grande angular na câmara e, finalmente, faz o foco: – Veja, se eu der uma entortadinha de nada no manancial afunilador desta câmara, posso fazer a foto a dois palmos da tela, sem nenhuma distorção axial ou ventricular.

Zeca
– Curioso, realmente… eu jamais imaginaria existir uma coisa dessas: distorção axial e ventricular?

Alemão
- Se, além da entortada, usar uma válvula, igual às encontradas em qualquer banal caixa de descarga de vaso sanitário, posso fazer a foto rente à tela. Neste caso corro o risco de tocar a pintura, cara.

Zeca
– Incrível.
 
Alemão – Invenção minha, a famosa improvisação criativa brasileira, cara, coisa que usamos e abusamos de montão no futebol.
Bolação jamais imaginada pelos fabricantes.
 
Zeca – Você não pensou em patentear essa invenção?
 
Alemão – Não, nada disso, cara, essa coisa de comércio, balancete, imposto a pagar, carimbos, não é a minha praia, meu barato são fotos, só fotos.
Saindo daqui vou ao atelier do talentoso Euphyldes fotografar o trabalho selecionado para a deslumbrante Bienal de Veneza. Um genial painel de pinho-de-riga maciço, com aplicações de peças industriais coletadas no lixo das favelas da Rocinha e Vidigal.
 
Zeca – Lixo? Por que peças do lixo?

Alemão
– As peças foram primorosamente selecionadas em programação fantástica, por computador de última geração. Uma idéia simples, cara: a base de pinho-de-riga representa o primeiro mundo tomado por produtos brasileiros, simbolizados pela sucata. Sucata, primorosamente selecionada, de produtos consumidos até pelos menos favorecidos economicamente.
Um louvor ao nosso progresso industrial, cultural e social.

Zeca
– A obra foi bolada pelo artista?

Alemão
– Encomenda do ministro Urubú-Passarinho para o Palácio.

Zeca
– Entendi, dá para entender bem a grandeza e profundidade do assunto.

Alemão
– Simples também a concepção das onipresentes esculturas do primoroso Euphyldes, executadas em Carrara: peças de mármore branco fatiado — imagine um salsichão diligentemente cortado em fatias finas. Imaginou? A coisa é por aí, cara. O vernissage, na galeria da trepidante Raquel, foi uma zorra. O Banco do Zezito comprou a série que está atualmente no Japão participando da edificante mostra O Colorido Brasil de Hoje, com patrocínio do Itamarati. Eu tive a honra de ser escolhido para fazer as fotos do catálogo.
 
(O Alemão dá o trabalho por terminado, desliga os focos de luz).
 
Zeca – Uma obra toda em branco para o Colorido Brasil de Hoje?

Alemão
– Isso mesmo, uma idéia genial, cara. O branco dessa obra a demonstrar que, com os militares no poder, é claro que com apoio total da nossa pouco citada elite no processo, vai tudo bem por aqui, tanto econômica como politicamente. O colorido das demais obras registra a alegria, o otimismo, o progresso, essa coisa toda que todos aplaudimos com veemência cotidianamente.

Zeca
– Entendo, essa coisa toda é por aí mesmo: prá frente e prô alto.
Me diga uma coisa, de tudo o que você fotografou em arte, o que mais te chamou a atenção?

Alemão
– Tem muita coisa, cara, tem muita mesmo… é difícil escolher… muito difícil mesmo.
Bem… na verdade… cara, foi há uns dez anos, quando fotografei o esfuziante pintor americano John Tillinguetti em levitação, vestido com um cafetã laranja-tibete todo bordado com fios de ouro puro. Levitando, cara, ele pintava, sem auxílio de pincéis nem tintas, uma tela inexistente. Os presentes, em alfa, recebiam telepaticamente as formas materializadas por ele, acompanhadas do som mais incrível e de perfume inebriante. Um clima de muita emoção, profunda espiritualidade e intensa criatividade, que bem valeu os 300 mil dólares pagos a ele pela Bienal.

Zeca –
Nada como uma generosa Bienal brindando comuma boa grana a alegria do emérito levitador, não é mesmo?

Alemão –
Um espetáculo forte, cara, assistido por mais de 60 pessoas e que monopolizou a mídia cultural durante a semana inteira, incrementando até os suplementos culturais de domingo.

Zeca
– Li algo sobre esse evento, onde tudo indica que correu muito pó, não é verdade? Pintar sem pinceis e tintas uma tela inexistente é dose.

Alemão
– Foi exatamente nessa apresentação que o Nestor Mitsubishi teve o seu comentado chilique, caindo duro e seco no chão. Muitos riam, alguém chorou, foi uma zorra, meu caro.
 
(Com a mesma leveza com que armara toda aquela tralha, o Alemão a desmonta. Coloca a hiper-super câmara e sua lente obsessiva no estojo inviolável, fecha a mala com os três metros e meio de feltro carmesim dentro).
 
(Olhando o painel) A tua temática, cara, lembra demais os modernistas. Pintura bonita, desenho forte, cores vibrantes, mas fora de moda, coisa do passado, técnica superada, produto de consumo restrito.
É, digamos, um trabalho figurativo, engajado, tendente a realçar os valores que estamos ansiosos por enterrar.

Zeca
– Que valores?Dá para você revelar quem está ansioso por enterrar… e, enterrar o quê?

Alemão
– Valores, felizmente superados, meu caro. Afinal, já estamos com um pé no primeiro mundo. Veja só, estive fotografando a montagem da Bienal e gostei demais do projeto da Ann, americana de Ohio, a instalação Paralleles Lines, que ocupa duas salas contíguas.  Na sala maior, cara, as paredes foram chamuscadas à vela, o piso coberto de chapinhas soltas de metal. No centro, um berço, também de metal, com cinco toneladas de velas apagadas. Na outra sala, veja que maravilha, cara, a criativa Ann cobriu as paredes e o piso com chapinhas idênticas; no centro, duas vitrinas com milhares de besouros vivos sugando a carcaça de um peru.

Zeca
– Olha que interessante, realmente interessante: chapinhas de metal, velas apagadas, berço, vitrinas, peru morto sugado por besouros… tudo isso em tempo real e em cores? realmente inédito e surpreendente. Me permita uma perguntinha: isso é arte? Dá para compará-la a obras de Praxisteles, Rembrand ou Rivera? Note que não citei, propositalmente, nenhum brasileiro.

Alemão
– Arte da mais cristalina, pura, arte do nosso tempo, cara, a suplantar de longe o que se fez no passado. Obra densa como se pode perceber, uma feliz síntese do relacionamento entre natureza e cultura – como a autora bem a definiu.

Zeca
– Um belo e seguro relacionamento. A natureza e a cultura? Realmente, meu pai já dizia: vivendo e aprendendo…

Alemão
– A sacanagem, cara, como não poderia deixar de ser, ficou com um brasileiro, que acabou montando seu trabalho numa sala em forma de cruz, com três ambientes. Num deles, as paredes foram grafitadas com os mais chulos dizeres de banheiro público. No alto, dois cobertores de oncinhas cercados de formas fálicas. Um projeto caro, que demandou meses e meses de cuidadosas pesquisas, tudo pago por montadora de automóveis.

Zeca
– Na verdade pago por todos nós. A montadora, descontou esse dinheiro do imposto a pagar. A chamada Lei Ruanet que dá às grandes empresas dinheiro para se auto promoverem e, ao mesmo tempo, o poder de controlar os caminhos da arte.
Diga-me sinceramente, você acha que dá para entender o que esses artistas querem dizer ou são “obras de arte” só entendidas por eles.

Alemão
– Nada disso, cara, são obras contundentes, você sente o que o artista quer transmitir. Entra na alma da gente por osmose, por… ou sei lá como… e tumultua tudo.
Vendo esta Bienal, achei correto o Stockler ter podado o Jacob da curadoria, pois seria um retrocesso abrir a Bienal (como pretendia o Jacob) a outras correntes artísticas que, seguramente, iriam poluir o clima de alto astral criado pela arte contemporânea.

Zeca
– Perdoe, mas discordo, o certo seria a Bienal estar aberta a todas as correntes artísticas existentes, possibilitando, com o confronto, um amplo debate entre elas. O certo seria democratizar a Bienal, de forma a que passe a respeitar os princípios de igualdade e respeito à criação artística.
E, isso, meu caro, não é um favor é um direito, uma vez que a Bienal recebe verbas e benesses públicas.

Alemão
– A coisa não é por aí, cara, é uma questão de coerência. Afinal, a Bienal foi fundada com o apoio de generais da indústria, coronéis da terra e papas das finanças, com o objetivo bem definido de prestigiar as correntes artísticas voltadas para a internacionalidade, tomando como modelo o primeiro mundo. Graças à visão dessa elite, saímos do atraso nessa importantíssima área cultural, dando um basta ao muralismo e às obras voltadas para o regionalismo, todas elas de baixa propaganda política.

Zeca
– Na verdade foi um retrocesso, com a Bienal voltamos a copiar o que nos vem de fora, coisa que havíamos deixado de fazer com o modernismo. Deixamos de interpretar a nossa realidade de registrar nossas cores e temas, traduzir a alma de nossa gente.

Alemão
– Saudosismo teu, totalmente desvinculado do nosso tempo. Imagine ter que expor ao lado da criativa Ann, americana de Ohio, por exemplo, obras com meninos-de-rua, Amazônia devastada, índios sarampiados, trabalhadores desempregados, lavradores sem terra…  seria um vexame. Cara, seria voltar à figuração comprometida com a demagogia, tão a gosto dos anos de 1920 a 1940, quando predominava a temática de mulatas, retirantes e putas do mangue.

Zeca
– Essa é a nossa temática, gente, voltada para a nossa realidade, para a nossa cultura. É o que nos diferencia, o que nos torna autênticos e admirados, que…

Alemão
– Essa, que você chama de nossa realidade, é de uma pobreza total de imaginação que a Bienal anulou para sempre.
O tempo passou, cara. No lugar de ficar contemplando o próprio umbigo nos voltamos para o mundo. Hoje o artista brasileiro é um estudioso dos museus e galerias de vanguarda da Europa e dos Estados Unidos…

Zeca
– Onde é adestrado a copiar no lugar de criar.

Alemão
–… Circula pelas grandes capitais do primeiro mundo, cara, faz estágios nos grandes centros culturais de vanguarda desses países, absorvendo aquela cultura toda. É uma personalidade considerada pela elite, pelos governantes, pontifica nas colunas sociais…

Zeca
– Grande maravilha torna-se cão-de-guarda a ladrar a favor do elitismo alienante.

Alemão
-… Suas obras – deixe-me terminar o meu raciocínio — estão nos museus e galerias de maior prestígio, decoram bancos, palácios governamentais, praças, instalações das poderosas multinacionais.
Não seria justo, portanto, submeter a Bienal a aventuras, logo agora que o padrão primeiro-mundista se firmou definitivamente como tendência global irreversível.

Zeca
– Isso me lembra o tenebroso corredor da 18ª Bienal, com obras de artistas dos cinco continentes: um quilômetro de paredes cobertas com centenas de pinturas neo-expressionistas colocadas lado a lado, onde era impossível distinguir as obras dos europeus das obras dos africanos, asiáticos, norte-americanos ou brasileiros Todas elas absoluta, total e completamente idênticas, tanto na forma como na cor.

Alemão
– Diga maravilhoso no lugar de tenebroso e estará mais próximo da verdade.
Esse maravilhoso corredor, meu caro; vou repetir: esse maravilhoso corredor super elogiado pela crítica internacional é prova inegável de integração cultural, a apagar todas as diferenças entre países pobres e países ricos. Um mundo só, cara. É a aldeia global, entende?

Zeca
– Não seria mais apropriado chamar de colonialismo cultural a essa macdonaldnização da arte?

Alemão
– A coisa não é por ai, acabou-se o nacionalismo, regionalismo, tribalismo, fanatismo e outros ismos, hoje tudo é internacional, mundial, universal, grandioso, global.

Zeca
– Perdoe, mas sou obrigado a discordar. Vejo que, felizmente, muita gente vem questionando o descaminho das artes plásticas, tanto aqui no Brasil como no exterior. Nos cabe perguntar qual a razão que levou a criação da Bienal e dos Museus de Arte Moderna de Sampa e Rio, inquirir suas histórias, a razão do seu conceito elitista, exclusivista, seu alheamento… o diabo. Não será hora de se pensar em acionar juridicamente a Bienal por mau uso do dinheiro público, em razão de sua política discriminatória, antiética, antidemocrática?…

Alemão
– Meu caro, não me leve a mal, manda quem pode,(apanha sua tralha) a Bienal é a menina dos olhos dos poderosos deste país e, atenção: vê se você me entende, dos americanos aliados à poderosos países do primeiro mundo. Eles: MoMA, Centro Georges Pompidou, Tate Modern, mais duas ou três organizações culturais, mandam, impõem, ordenam.
Aos nossos doutos entendidos em arte cabe baixar a cabeça solícitos. Servis, só lhes resta seguir a onda, ninguém quer perder o status e… o emprego.

Zeca
- Isso é mais que vergonhoso.

Alemão
– Não podemos ser ingênuos, cara; veja, tanto a educação como a saúde, hoje, são mercadoria. Qual a razão da arte não ser mercadoria também? É assim que deve ser; a arte contemporânea está voltada para entreter, decorar, criar moda, dar status… e, cara, movimentar grana… muita grana, é isso o que move o mundo.
Hoje, cara, neste nosso mundo, eu, você e o resto, tudo é mercadoria.

Zeca –
Eu vejo aarte de outra forma, a minha concepção é totalmente oposta à sua…
Acho queestamos vivendo um clima semelhante à época em que os doutos da igreja discutiam o sexo dos anjos. As teses, então debatidas pelos mais prestigiados teólogos, considerados os mais cultos da época, estão hoje totalmente esquecidas.

Alemão –
Não entendi, não sei aonde você quer chegar.

Zeca
– Quero dizer que a História não registra o nome de nenhum daqueles monstros sagrados, nem de nenhuma de suas teses por uma razão simples: eram questões elitistas, divorciadas da realidade.

Alemão –
Essa não, você não pode negar que todo mundo ouviu falar em Sexo dos Anjos e Quantos Anjos cabem na Cabeça de um Alfinete, pode?

Zeca –
Ouviram falar, sim, como sinônimo de cultura inútil, de perda de tempo, de bobagem.
Os monstros sagrados das artes dos nossos dias, mentores da chamada arte contemporânea, acastelados, como você bem disse, em meia dúzia de instituições poderosas, com controle global sobre o mundo acadêmico e a mídia criaram, a custo de milhões de dólares, um mundo de fantasia, absolutamente elitista, voltado para a alienação e o emburrecimento.

Alemão –
Essa não, como você pode você falar assim da arte contemporânea.

Zeca -
Veja o seguinte: a partir dos anos 60, por razões políticas, a arte se dividiu em duas vertentes, uma delas formalista ou conceitual a outra realista ou de conteúdo. A primeira se fez chamar de arte contemporânea, denominando a segunda de retrógrada ou ultrapassada.

Alemão –
O que é correto, cara, a arte formal e conceitual são produtos do progresso, representam os nossos dias, são, por essa exclusiva razão contemporâneas, cara, surgiram com o advento das viagens espaciais, “das mudanças no mundo e na nossa relação de tempo e espaço que transformam globalmente os seres humanos”, da necessidade de novas formas, não tem nada a ver com política.
Zeca – Discordo. Caso você se interesse em saber um pouco mais sobre a interferência da política na arte, de uma olhada em “guerra fria cultural” na Net. Você vai se surpreender… Você acha correto classificar a arte de conteúdo como retrógrada?

Alemão –
Acho, são retrógadas quanto ao conceito, forma e meios, totalmente superadas, atrasadas, cara. É isso o que importa, o que as levou a serem assim classificadas.

Zeca –
Estou certo que um dia, a semelhança dos doutos da igreja do passado, todos esses donos da verdade, encastelados em suas torres de marfim, serão avaliados e, revelados seus propósitos de domínio cultural, serão lançados no lixo da história…

Alemão
– Bonito discurso, belas palavras que, na minha avaliação, não passam, porém, de palavras que o vento leva.
Na verdade, cara, como já disse, manda quem pode. É isso aí. Foi um prazer… Te mando as fotos ainda esta semana. Até a vista.

Zeca
– Até logo, tenha um bom dia.

O Alemão sai da oficina.


Zeca -
Lá vai o Alemão, minha gente, rumo a outras mesopotâmias e novas iorques, para fotografar as mais de cem mil instalações, pinturas e obras tridimensionais “contemporâneas” que aguardam sôfregas a sua magnífica grande angular de deformação zero em zênite frontal explicito.
(dirigindo-se ao público) Voltando ao que interessa minha gente, eu pergunto: é justo fazer do mundo um grande balcão de negócios?
 
LUIZ VENTURA, Rio de Janeiro- 28/01/2012 
revisado em janeiro de 2014.

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