Esquete sobre Colonialismo Cultural

Por:  LUIZ VENTURA
A Bienal de São Paulo em três tempos
Esquete sobre colonialismo cultural – LUIZ VENTURA, 2011. Revisto em novembro de 2013
 
Dedico este texto aos amigos de juventude Mário Gruber e Octávio Araujo,
pelos muitos anos que praticamos juntos artes plásticas e política cultural.
 
 
ÉPOCA: 1951
O cenário é constituído apenas de uma tela para projeção de imagem e som, localizada no centro do fundo do palco. Abaixo da tela uma pequena cerca de ripas de madeira pintada.
Num dos lados da tela uma abertura convencional de porta de 70 cm, fechada com cortina, que serve como entrada.
 
PERSONAGENS:
Bienal Saint-Paul da Silva — executiva, lobista, mulata jovem, bonita, cabelos alisados.
 
Artista, — Nestor Mitsu Bicho, artista plástico, menos de 30 anos.
 
Sicillo Matta Raso – amante da Bienal, é chamado de Padrinho por ela, industrial paulistano, em torno de 40 anos.
 
Nelson Roque Félix — criou a Bienal, é chamado de Paizinho por ela, cerca de 40 anos, magnata americano
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PRIMEIRO TEMPO
 
CENÁRIO – na tela foto da Av. Paulista em 1950.
 
Bienal de pé, girando uma bolsinha, vestida e maquiada de forma a exaltar sua sexualidade. Veste casaquinho sobre o vestido, meias de seda com costura, sapatos de salto alto. Colar, brinco, bracelete, relógio de pulso, anel e fina tornozeleira, tudo combinando, de ouro maciço finamente trabalhado imitando lata.
 
Bienal – Como vocês me vêem toda produzida, elegantíssima e super sexi, podem adivinhar que estou fazendo ponto aqui no Trianon da Paulista, passando o maior frio debaixo desta garoa quando podia estar no bem bom do quentinho, junto de Padrinho.
Estou trabalhando sim, atrás de homem e também de mulher… ora… homem ou mulher artista plástico, bem entendido; só me interesso por artista plástico, é a minha paixão, meu devaneio, única razão de minha existência.
Paizinho me fez assim.
Estou me dando bem. Meus queridos namorados aumentam a olhos vistos, coisa que parecia impossível até há muitos poucos meses.
Este é o meu ponto preferido, más não fico só aqui não, meus queridos, vou também aos ateliês e galerias. Não me dou descanso, viajo prá qualquer lugar daqui e de fora. Falo inglês, espanhol, francês, italiano e alemão e me viro em muitas outras línguas; sou poliglota de nascença.
Paizinho me criou assim.

(Toda sedução) Eu sei que sou sedutora, sei como conquistar um artista: chego de mansinho com aquela ginga bem gostosa… ora… Você sabe bem da vertigem que provoca um decote ousado bem manipulado, o “calor” que causa ver a língua umedecendo os lábios glamurosamente pintados e a expectativa tensa dos mágicos segundos da abertura das coxas, a revelar a existência ou não da calcinha, ao cruzar das pernas.
Complemento os gestos e o meu visual com vozinha meiga, olhar conivente e passo logo as minhas condições: prá ficar comigo têm que ser artista de vanguarda, ora.
Muitos, no primeiro momento, perdem o fôlego intimidados e custam a tomar pé, balbuciando palavras soltas se agarram com unhas e dentes às minhas promessas. Temerosos, desconfiados e ainda incrédulos, se deixam levar, cobiçosos da minha oferecida intimidade.
Alguns, os babões, se entregam no ato e, como bons vaselinas que são procuram assegurar, de imediato privilégios e benesses… enfim, um lugar privilegiado ao sol.
Outros só pegam no tranco depois de uma boa cantada onde sou obrigada a usar de argumentos fortes em torno de fama, dinheiro, poder, títulos, homenagens, publicações e demais atrativos aliciantes. São, na verdade, os durões, sempre em busca de vantagens.
Enfim. o sucesso,meus queridos, chega sempre quando se sabe dar aquele jeitinho especial e único a cada um em particular. Sabemos de sobra que todo ser humano é… lá, bem no fundo, humano, ora.(discreto sinal de dinheiro com os dedos)
Adoro converter um radical à minha filosofia, nada melhor do que sentir a voz rouca do macho convertido cochichando ao meu ouvido sua paixão por mim ou o fremir da fêmea à sussurrar seu êxtase.
O mundo mudou, ora. Minhas queridas e queridos, o mundo mudou muito, hoje “cabe ao artista questionar a sua própria linguagem artística, a imagem em si, que graças a múltiplos fatores, passou subitamente a dominar o dia-a-dia do mundo contemporâneo”; indescritível mudança nunca anteriormente registrada pela História.
Gosto do meu trabalho a favor de uma arte livre, pura, descompromissada, inodora, politicamente neutra, a refletir o nobre ideal ocidental cristão da livre empresa, liberdade e tudo o mais.
(sonhadora) Um dia, estou certa, se saberá do decisivo e heróico papel desempenhado por nós nessa súbita e vertiginosa ruptura.
Minha tia MoMA de Nova Iorque, minha  gente, considerada como a maior cafetina das artes plásticas do mundo, me ensinou pacientemente tudo, de A a Z.
E o meu querido Paizinho, sempre a meu lado, me dando a maior força.
Sou ousada de nascença, saibam que sou uma das primeiras no mundo  dedicada à promoção da arte de vanguarda.
Trabalho com afinco para tornar possível a cada um ter “contato direto com as artes visuais, cênicas e gráficas, música, cinema, arquitetura e outras formas de expressão artística de todo o mundo”. Eu não fico só nisso não, me proponho ser “intercâmbio cultural, educação, desenvolvimento econômico, inserção social, negócios, lazer, e turismo”. Enfim, me dedico com afinco, minha gente, para fazer da arte um negócio altamente rentável, voltado para um mercado dinâmico e lucrativo.
Dou duro para me tornar um símbolo do nosso país no exterior.
Faço de tudo para alegrar Padrinho que me considera sua maior conquista (nos entendemos em tudo,(maliciosa) ora… em tudo…vocês sabem…) Ele me adora, sua mulher também. Ela está organizando um baile em minha homenagem para a semana que vem. É para arrecadar fundos — não que eu esteja meio precisada, pois o querido Paizinho não se descuida de mim. Será mais um ato político onde serei apresentada oficialmente à alta sociedade, aos donos do dinheiro, à elite; na verdade será também um ato de vassalagem, dirigido aos artistas, para confirmar o meu poder, a exemplo da querida tia MoMA que manda e desmanda, leva e traz, vira e desvira todos aqueles artistas plásticos hiper importantes lá em Nova Iorque.
Paizinho, que sabe das coisas e preside os negócios dela já está abrindo sucursais no mundo todo. ”Putaria de primeira classe, minha gente”, diz Paizinho, “desde os primórdios da Humanidade sempre deu muito poder, prestígio e dinheiro”.

A Bienal sai
 
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(Chegada do Nelson Roque Félix
ao aeroporto de Congonhas, vindo de Nova Iorque)
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CENÁRIO – cadeiras no primeiro plano; na tela foto de avião de passageiros da época, em terra.
 
Bienal: com roupa social adequada à situação, sapatos e adereços combinando.
Nelson: trajando blujeans, camisa quadriculada com as mangas dobradas à altura dos cotovelos, lenço colorido no pescoço, colete e botas curtas de couro, chapéu de caubói, com pasta de mão, de couro.
 
Entra a Bienal em atitude de espera, logo a seguir chega o Nelson.
 
Nelson  (Se abraçam) Oi querida, conquistadora de corações, linda e elegante como sempre…
Bienal  (beijando o Nelson no rosto) Que saudades Paizinho, bom você ter vindo. Fez boa viagem?
Nelson -… me deixe vê-la melhor; você está mais linda do que nunca.  Obrigado por ter vindo me esperar.
Bienal - Ora, você acha, Paizinho, que eu deixaria de ter o prazer de ser a primeira a vê-lo? Temos muito a conversar; eu adoro você, adorei você ter vindo.
Nelson – Viagem ótima. Ainda estou impressionado com a rapidez da viagem, filhinha.  A aviação comercial realmente revolucionou e em breve iremos dar adeus às viagens marítimas. Fabuloso, simplesmente fantástico, não tenho outras palavras.
Bienal – É o progresso a largos passos que bate à nossa porta. Vamos nos sentar?
Nelson – Sente-se você, eu fiquei sentado muito tempo.
Durante a viagem pensei do acerto em ter escolhido o Brasil para receber a nossa ajuda. A Argentina e o México, filhinha, eram candidatos fortes, más ficamos com vocês. Eu, então, dando a tua tia MoMA como exemplo, os incentivei a fundar os museus de arte moderna em São Paulo e Rio e ainda a criar você, minha querida, com o nosso maior carinho e atenção.
Bienal – Que bom ouvir você dizer isso, ótimo ver você alegre e bem
disposto como sempre. De minha parte estou a mil em função do baile da
Landa… você não pode imaginar que trabalheira… gente, nunca Imaginei isso.
Nelson – Muito boa idéia da Landa de homenageá-la, juntando os granfinos em torno de você. Soube que vem gente do Brasil inteiro… altas autoridades, até a mulher do presidente da república… ouvi dizer até que está havendo briga por convite.
Bienal – Verdade Paizinho, todo mundo quer ser convidado, a Landa sabe fazer as coisas, é super detalhista e muito organizada.
Nelson – A Landa é uma grande dama, sorte do Sicillo em haver-se casado com ela. Fiz com ele uma boa parceria, visando fortalecer a amizade entre os nossos países, já que temos os mesmos objetivos.
Bienal – Vocês trabalham juntos há muito tempo, não é, Paizinho?
Nelson – Conheci o Sicillo quando ele era estudante bolsista na América, fomos aliados na guerra, vencemos o nazifascismo, minha querida, agora nossa luta é contra o comunismo que ameaça os nossos mais sagrados ideais de livre empresa, liberdade e democracia.
Bienal – Eu gosto muito dos Matta Raso, são simpáticos, cultos, amantes das artes; ele é muito competente e entusiasmado e a Landa é uma ótima companhia, alegre, comunicativa, inteligente; são perfeitos. Eles são o que de melhor você poderia encontrar aqui no Brasil.
Nelson – Eu também me felicito por tê-los conhecido e feito parceria com o Sicillo em prol da livre empresa, liberdade, e tudo o mais.
Nós, americanos, acreditamos que as artes podem nos ajudar nessa batalha. Vimos resultados positivos com a tua tia MoMA, agora estamos espalhando essa experiência pelo mundo afora.
Bienal – Gostei de você ter escolhido o Brasil em primeiríssimo lugar.
Nelson – Já estamos atuando em boa parte do mundo, filhinha,
através da colaboração direta com um grande número de organizações culturais ou através de organizações filantrópicas, como as fundações Ford, Fairfield e Rockefeller.
Bienal – Estou sabendo que estão operando ou influenciando organizações internacionais em todos os campos. Eu fico admirada ao ver que vocês não dormem no ponto, estão sempre muitos passos à frente de quem quer que seja.
Nelson – Parafraseando os portugueses que dizem “Navegar é preciso; viver não é preciso” eu digo que “Trabalhar é preciso; viver não é preciso”. A parada é dura, minha filha, é preciso de muita garra para vencer.
Bienal – Com você nessa jogada, Paizinho, tenho a certeza que vão dar de goleada, de dez a zero.
Nelson – Estamos chupando cana e assobiando ao mesmo tempo,
querida, divulgando e impondo a nossa cultura e neutralizando as hostilidades contra a nossa política interna em relação aos negros e outras poucas coisinhas mais.
Bienal – Preconceito que vocês minimizam enviando artistas negros para o exterior, particularmente cantores, escritores e músicos, não é?
Nelson – Quem não tem cão caça como gato; é o que está dando para
fazer no momento. E você, como está lidando com os descontentes?
Bienal  Sem problemas. São meia dúzia de comunistas e alguns poucos
enciumados e ressentidos. Os comunistas se aproveitaram de comentários feitos nas páginas sociais sobre senhoras que haviam encomendado roupas de grife na Europa para o meu baile. Você pode imaginar o escândalo; mobilizaram os bancários, que estão em greve por aumento de salário, estes passaram a nos chamar de tubarões, aproveitadores e outros epítetos impronunciáveis. Nada, porém, que preocupe, nada sério.
Nelson – Estamos prontos para lidar com tudo isso, filhinha. Conte conosco. Você sabe que, para conquistar simpatia à nossa causa, estamos fazendo até o impossível. Organizando concertos, montando exposições de arte, minha querida, promovendo sinfônicas, grupos de balé e de teatro… cantores de ópera, músicos de jazz…
Bienal – Sei que estão organizando mega congressos culturais, criando riquíssimas publicações, livros e revistas, colaborando na produção de filmes e tudo o mais.
Nelson – Mandando brasa, querida. Dando os últimos retoques na central que monitora as nossas atividades no mundo todo.
Bienal – Vocês estão cobrindo toda a área artística e cultural e, eu afobada com um simples baile, imagino o tamanho da organização que vocês montaram e o custo disso, não é verdade?
Nelson – É verdade filhinha, veja que sendo a arte expressão de um povo, ela carrega em si uma ideologia, uma forma particular de pensar que pode levar muita gente a agir de forma equivocada, provocando conflitos. Essa a razão de estarmos trabalhando, como você bem sabe, para criar uma arte global, por um mundo só, um único ideal. Um mundo livre que contará com a nossa liderança permanente.
Bienal – Achei inteligente e oportuno vocês terem jogado o expressionismo abstrato para bater de frente contra o realismo socialista.
Nelson – A nossa vitória no campo cultural vai ser por aí, querida, vai ser por aí.  Foi um estudo da CIA junto da tua tia MoMA que determinou essa estratégia. Selecionamos o expressionismo abstrato como símbolo de arte livre, entre várias opções formais que julgávamos viáveis. Uma antítese perfeita ao realismo socialista, que tratamos como símbolo de arte dirigida.
Bienal – Ah, paizinho, adoro a tia MoMA, sempre carinhosa, atenta, pronta para colaborar. Ela me enfatizou sempre o importante papel político que nós, do campo da cultura, temos que desempenhar em defesa da livre empresa e tudo o mais…
Nelson – Certo, querida, está claro que os nossos interesses são políticos, estão acima da estética. Se amanhã, numa hipótese absurda,
o realismo socialista favorecer o mundo livre, passaremos a endeusá-lo e a denegrir, com a mesma energia e convicção, o expressionismo abstrato.
Bienal – É a lógica da política, né Paizinho? As escolas artísticas passam, os ideais ficam. Más, Paizinho, me conte, estou super curiosa; me conte como vocês conseguiram entrar na Europa com todo o desprezo que os europeus tinham em relação à cultura americana?
Nelson – Dando o que vocês chamam de jeitinho, querida, o famoso jeitinho brasileiro que na verdade é universal, e que sempre resolve tudo nesta vida. Você sabe que a CIA topa qualquer parada; não faz três anos, por exemplo, ela acabou com uma greve de estivadores de Marselha, na França, simplesmente contratando gansters locais para tratar com esmero e carinho do assunto…
Bienal – Que fantástico! Maravilha, acabar com uma greve em outro país e, ainda, com ajuda da bandidagem local.
Nelson – A situação pediu; foi para terminar de vez com a influência
comunista que era muito forte na ocasião. Isso no plano sindical, para as
artes plásticas mobilizamos, nessa mesma Europa, os críticos mais
conceituados, fazendo com que as mais prestigiosas revistas européias de arte passassem a publicar generosos artigos colocando os nossos artistas nas nuvens. Sucesso total, bastante rápido… e que ainda deu lucro.
Bienal – Não me diga que tudo isso foi dado de mão beijada, que caiu do céu assim generosamente. Ou ainda faltam coisinhas para me contar?
Nelson – Podemos dizer que foi uma feliz combinação onde a tua tia MoMA entrou com o seu prestígio e conhecimento somados à ajuda da Fundação Fairfield, ambas já com serviços prestados à CIA.
Fortes “argumentos” (faz com os dedos o símbolo de dinheiro) como você pode deduzir, asseguraram a colaboração das galerias européias de maior prestígio. Estas, por sua vez, com força para influenciar a estética em toda a Europa… e, por tabela, em todo o nosso querido mundo ocidental.
Bienal – Quem sabe ainda, com mais alguns poucos “argumentos”, venha a se criar o dogma do artista ou do intelectual livre, sem engajamento político, e este conceito venha a prevalecer para todo o sempre.
Nelson – Vamos procurar por isso. “O modelo que a CIA fixou, de
profissional de sucesso, é o do leão de chácara ideológico, e exclui
intelectuais críticos que tratem sobre a luta de classes, a exploração dos trabalhadores, e o imperialismo norte-americano, categorias consideradas “ideológicas” e não “objetivas”, como eles dizem”.
Bienal – O intelectual é sempre muito manhoso, Paizinho, diz uma coisa e
lá no fundo faz outra. Tendo um modelo definido como esse fica mais fácil mostrar a ele o verdadeiro caminho a seguir.
Nelson – Estamos abrindo generosamente aos artistas uma larga estrada para o sucesso. Basta que se inspire nestes quadros maravilhosos que vou doar aos museus de arte moderna, museus a quem dei muitos bons conselhos, (em tom de segredo) muito bons mesmo: ensinei a eles o caminho das pedras. São quadros, querida, que enobrecem a livre empresa, os valores democráticos e a liberdade intelectual.
Bienal – Graça a eles estou certa que iremos acabar de vez com essas nossas pinturinhas regionais engajadas, de retirantes, mulatas e putas do Mangue…
Nelson – Você tem razão, são obras canhestras de fundo político, filhinha, enganosas. Não passam de propaganda de mau gosto, querida, que só enfeiam as paredes e trazem idéias malsãs.
Nós estamos criando, você sabe disso melhor do que ninguém, uma poderosa rede internacional para impor a pureza da arte pela arte… aliás já falamos bastante sobre isso.
Bienal – Uma rede, não se esqueça meu querido, da qual eu faço parte e que irá atuar em todas as atividades da área, desde os primeiros passos nas escolas infantis até as universidades, dos artistas e professores às altas esferas dos dirigentes culturais.
Nelson – Certo querida, organizando cursos para formar intelectuais e artistas que defendam os nossos mais puros princípios.
Bienal – O sucesso virá por aí, né Paizinho; quem almejar postos em universidades, fundações e museus terá que seguir a linha artística definida por nós e ponto final.
Nelson – É bom ressaltar que neste momento não podemos ser intransigentes. Você entende onde quero chegar, não é mesmo?
Bienal – Sim, Paizinho, já fui alertada sobre isso. A nossa atuação deve ser sutilíssima, podemos fazer algumas concessões até conseguirmos firmar as nossas posições; não sair dando murro em ponta de faca, não é mesmo?
Nelson – Poderemos, nessa primeira exposição, até dar sala-de-artista-convidado para alguns dos antigos expoentes nacionais figurativos, de preferência para os mais bem relacionados socialmente.
Bienal – Ou ainda, para contornar uma situação delicada, poderemos
ser levados até a trazer do exterior obras históricas de artista figurativo de renome internacional.
Nelson – Isso filhinha, agir sempre com muita flexibilidade, com tato, preparar o terreno para colher os melhores frutos sem afobação.
São pequenas concessões a curto prazo, sem deixar espaço nem vez a ninguém ou nada que se oponha aos nossos ideais. E fazer programas de educação e controle com os próprios nativos de cada país, tudo corretamente financiado por estes mesmos países.
É claro que caberá sempre e somente a nós a última palavra e todos
irão ver que valerá a pena.
Bienal – Maravilha, Paizinho. Nós já estamos dando especial atenção
à monitoria, preparando pessoas para a nossa primeira exposição,
que expliquem aos visitantes que se sentirem desnorteados com
a arte formal, o significado e a importância das obras expostas.
Nelson – Dessa forma já estaremos fazendo a cabeça de milhares de pessoas em muito pouco tempo.Com as publicações, seminários, conferências e exposições promovidas por nós, daremos o maior prestígio e visibilidade possíveis a alguns dos grandes nomes da filosofia, ética política, sociologia e artes que irão definir as normas e padrões para a formação das novas gerações, seguindo, é claro,  os parâmetros criados pela CIA.
Bienal – Tudo sempre em função do progresso, liberdade  e tudo o mais…
Nelson – Veja que, além do progresso cultural, estamos trazendo também o progresso material, abrindo firmas de representação de produtos americanos, instalando oficinas, fábricas, laboratórios, bancos, nos associando majoritariamente a firmas nacionais em dificuldade, salvando-as da falência… importando matéria prima bruta: ferro, manganês, níquel, areia monazítica… comprando café…
Bienal – Criando mais e mais empregos, né Paizinho.
Nelson – Muitos, muitos empregos, estamos espalhando dinheiro, muito dinheiro para o trabalhador cumpridor de suas obrigações, cônscio de suas responsabilidades, sabedor do seu lugar na escala social.
Bienal – Tudo muito lindo, lindo. Estou curiosa para ver os quadros que você trouxe.
Nelson – São pinturas prontas para servir como modelo: neutras… assépticas; veja minha querida, um desses maravilhosos quadros tem por título… (procurando o título num papel) vamos ver… tem por título: “Sem título”. (desconcertado) Exatamente… sim… é o que diz aqui… o seu título, filhinha, é… imagine só: “Sem Título”.
Bienal – Oh! Que maravilha, Paizinho, realmente inovador, uma idéia muito original do autor, dar o título de “Sem Título” ao seu genial trabalho.
Nelson – Certo, sim… isso…tem razão querida… sim, é verdade, é bastante inovador; veja, é um quadro muito lindo, espiritual, repousante.
 
(O quadro é projetado na tela)
 
Voz pergunta: — Dr. Nelson, a posição está correta?
Nelson — Veja a assinatura, por favor.
(Depois de mover o quadro em várias posições, voz responde)
Voz: — Não tem assinatura.
 (O quadro fica na horizontal)
Nelson – Está bom assim, obrigado. Estar sem assinatura minha querida é, também… realmente… realmente inédito…
Bienal - Como você vê Paizinho, essa é mais uma das muitas vantagens do formalismo; você tem mais essa liberdade, a de escolher a posição que achar melhor para o trabalho que o artista deixou de assinar.
 
(Quadro muda para posição vertical)

FIM DO PRIMEIRO TEMPO
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SEGUNDO TEMPO
CENÁRIO – o mesmo local sem as cadeiras; na tela foto de trecho da Av. Paulista em 1950 – Bienal e Artista.
 

 
Bienal: com vestido florido, sapatos e adereços combinando.
 
Artista: terno claro, sandália de couro cru, camisa social, sem gravata;
com quadros sem molduras debaixo do braço.
 
 
Artista — Adoro a Paulista, acho incrível encontrar um bosque e jardins num lugar com este de prédios altos e vistosas casas senhoriais.
Bacana, é muito legal ter ainda hoje algo que escapuliu da especulação imobiliária.
(Vê a Bienal) Opa!  Olhe lá o broto. Mais que uva, sem dúvida é a mais bela flor deste jardim. Boazuda de verdade… será que está afim de uma paquerazinha?
(Dirigindo-se à Bienal) Prima, sou o Nestor, artista plástico; gostaria de saber quem é você, certo?
Bienal – Ora. Se você quiser me namorar, me namore, senão te janto com melancia.
Artista – Eu é que adoraria ser bem mordidinho, mastigadinho por você, prima; más, sem brincadeira, você deve ter sentido pelo meu terno e doce olhar a minha irrefreável atração por você, certo? O meu incontido desejo de…
Bienal – Estou sabendo.
Artista -… Estou afim de uma paquera, de penetrar profundamente nos teus adoráveis sentimentos, certo? Me acercar, entender de você, estreitar a nossa amizade… abraçar os teus ideais… entende?
Bienal – Estou só ouvindo; a tua introdução é, por sinal, pouco refinada, cheia de penetrações, estreitamentos, abraços. Assim mesmo, apesar do teu pouco tato, já senti pelo teu olhar que você tem reais possibilidades.
Artista – Eu não disse o que disse tontamente, só para te chocar, certo? Disse apenas o que sinto por você, entende?
Bienal – Saiba que simpatizei com você, ora, acho que você tem chance. Querido, se você está gamado te aviso que eu só namoro artista voltado para a modernidade, criador de coisas novas, vanguardista. Acho que poderemos namorar sempre que você deixar de lado essa tua pinturinhazinha pavorosa… horrorosa, que me faz um grande mal.
Artista – Sei não, prima, essa coisa de vanguardismo, formalismo, abstracionismo, me parece de encomenda prá quem não sabe desenhar. São borrões no lugar de imagens, é coisa sem sentido, sem vida, sem sentimento, entende?
 
CENÁRIO – Na tela uma sucessão lenta de imagens de quadros abstratos.
 
Bienal – Meu querido, isso é conversa mole prá enganar mal informado. O teu “modernismo, fruto de um nacionalismo que nos conduziu ao caos sem ética”, é reflexo de cultura subdesenvolvida. Felizmente o modernismo “está prestes a se encerrar, derrotado pela ciência quântica, pela psicologia, pela alta literatura, pela arte mais sensível” voltada para si mesma”.
Teu estilo de pintura, que teve sua razão de ser antes da descoberta da fotografia, hoje é zero à esquerda.
Artista – Sei, não, prima. Sei que foto e pintura são linguagens diferentes, certo? Cada uma na sua, cada qual com suas qualidades e limitações. Veja que o cinema não acabou com o teatro, e a televisão não acabou com o cinema, entende?
Bienal – Palavras, apenas palavras a juntar o joio ao trigo, o ruim ao péssimo, meu querido. Sinto que você é audacioso e propenso a se aventurar, sinto ser corajoso pronto a romper com o passado afim de ocupar o teu merecido lugar ao sol dos novos tempos. Lugar onde a fama e muita grana estão de braços abertos à tua espera.
Artista – Sei não, prima. Tendo tanta coisa bacana para pintar: a nossa paisagem, nossa gente, nossas inquietações, sonhos e desejos… mulheres bonitas como você, entende? Como eu poderei ficar pintando quadradinhos ou borrões? Qual a graça disso, tendo uvinhas gostosas como você de modelo, entende? Pintar um voluptuosos nu teu, entre frágeis e coloridas flores e…
Bienal – Vamos ficar por ai, tá? Agradeço o elogio, sei muito bem que sou atraente e desejada… más, querido, não são borrões nem quadradinhos, o expressionismo abstrato é o que se criou de mais avançado, sensível e inteligente em artes plásticas até hoje; é a poderosa e avassaladora arte americana que conquistou o mundo com a força de um super blindado gigante, ocupando os salões mais refinados, as mais seletivas galerias; arte que é hoje a jóia dos principais museus. Obras ainda com tinta fresca já valendo milhões.
Artista – Pode ser, más não me vejo borrando tela, certo?  Gastando tinta à toa…
Bienal – Me conte, venha bem juntinho de mim, fale no meu ouvido, como num cochicho, o seu segredinho: por que você é tão contra o formalismo?
Artista – (O artista se aproxima tocando a Bienal pela cintura. Esta se aconchega maliciosa) O formalismo não me diz nada, prima, é coisa imposta, não é fruto da nossa necessidade, da nossa cultura. Eu não sou contra que alguém queira perder tempo com isso; sou pela liberdade de criação, acho que cada um tem o direito de fazer o que quiser.
Eu, porém, é que não vou cair nessa.
Bienal – Os estudiosos, meu querido, dizem que a cada época uma nação comanda a vida cultural e política dos demais países. Antes foi pela força, hoje pela mídia. O momento atual, amorzinho, inegavelmente é dos americanos.
Artista – Êta conversinha colonizada mais desenxabida. Até ontem acontecia do artista ser influenciado por outra cultura que não a sua; no caso a influência das culturas helênica, romana, etc. ou ser influenciado por uma escola artística, no caso do impressionismo, cubismo…
Bienal – Ora, você não percebe que está confirmando o que eu disse, com outras palavras, meu querido.
Artista – Não mesmo, prima. Antes o artista era influenciado, veja bem o termo que usei: influenciado, certo? Vocês formalistas, no entanto, impõem uma escola, vocês nos obrigam a seguir o que vocês querem. Não temos escolha, ou fazemos o que vocês determinam ou seremos largados às traças, certo?  Isso é o que se chama de ditadura cultural, minha querida prima, entende? Uma contradição para vocês que falam tanto em liberdade e democracia.
Bienal – É melhor ficarmos por aqui, meu querido, já que este assunto tratado dessa forma, com esse tom, não nos levará a nada, nunca.
Amor, não se trata de gastar tinta a toa, você irá encontrar a tua forma de se expressar. Talvez uma pintura mais gestual ou mais cheia de matéria… talvez enxuta, minimalista… quem sabe você chegue a criar até a própria inexistência da obra, o êxtase da idéia como obra de arte… a idéia sem mais nada… a criação pura, talvez telepática em seu mais alto estágio… uma arte tipo sonho dos alquimistas: a transmutação da pintura, meu querido.
Artista – Prima, está provado cientificamente que a pintura de conteúdo, chega ao córtex cerebral, à alma das pessoas, entende? Ela cria emoção, as pessoas se recordam dela em detalhes. A formal, necas de piribitibas, não passa de peça decorativa, por mais cerebrina que seja não passa de decoração a combinar com o sofá da sala.
Bienal – De onde você tirou tanta conversa mole?
Artista – Preste atenção, prima, a arte formal é um dos ramos das artes aplicadas. É arte decorativa, não é Arte com A maiúscula, ela é tão engenhosa e bela quanto a arte de dobrar papel ou da de dar nó em barbante, a exemplo dos nós de marinheiro, entende?
Bienal – Essa agora é de doer. Depois te respondo, para não fugir ao que estamos tratando no momento.
Artista – Prima, na verdade eu acho que você faz parte desse grupo que usa do formalismo com outros fins, só que eu não sei quais, certo?  Vocês têm a capacidade de criar e incentivar a alienação e o emburrecimento do artista, do intelectual, entende? Você está me escondendo algo que não atino o que seja…
Bienal – Deixe de tolice, meu querido, você está meio perdido…
(compreensiva) Entre na real ignaro artista de olhar melífluo, lembre que o teu modernismo está escorado na sociedade agrária, nos latifúndios onde chafurda até hoje a escravidão. Veja a diferença, meu querido, teus patronos foram os grandes fazendeiros de café, coisa inteiramente do passado, a abstração é a arte da livre empresa, das multinacionais poderosas, cheias da grana, é a arte da nossa época. Para o artista é a mais feliz combinação de fama e dinheiro vivo juntos; o teu nome nas manchetes, nos livros, nos filmes e dólares no bolso, as dominadoras verdinhas.
Artista – Sendo a arte das multinacionais, o que isso tem a haver com a nossa realidade, com o Brasil?
Bienal – Tem tudo a haver uma vez que almejamos o progresso, sonhamos em nos tornar um país de primeiro mundo, ora.
Artista – Sei não, você sabe muito bem que americano não dá ponto sem nó, calcule quanto isso irá nos custar, tanto do ponto de vista cultural como do econômico, de nossa soberania, certo?
Bienal – Querido, não seja xenófobo empedernido, todos sabem que o que é bom para a América e bom para o Brasil. Você disse bem, que os americanos não dão ponto sem nó; esteja certo que a arte livre voltada para si mesma, sensível, descompromissada, apolítica, veio para ficar. Hoje somos internacionais, amanhã com a derrota do totalitarismo, seremos globais.
Artista – Você acha que o teu formalismo irá suplantar o que vem sendo
acalentado há séculos pela humanidade: uma arte baseada no saber fazer artístico, na cultura, produto dos ideais e anseios do Homem?
Bienal – Te respondo afirmando que o dinheiro comanda a mídia e esta a todos nós. O dinheiro faz milagres: faz do diabo, anjo, do verde, o vermelho.
Os americanos, meu docinho, criaram, em combinação com as elites dos países mais ricos da Europa, uma central difusora e promocional poderosa a servir o mundo livre, à altura do poder econômico que eles detêm.
Estão torrando milhões nessa empreitada… eu disse mi-lhõ-es, meu querido! Ouça bem: milhões de dó-la-res.
Artista – Estão montando o que? Uma hiper-super-mega empresa de compra, troca e venda de arte… a varejo e por atacado? …em suaves prestações? Algo gigantesco, indescritível, certo?
Bienal – Nada disso, querido. É coisa muito mais complexa e que já está mudando radicalmente o que se entende por arte no mundo.
Nós, aqui no Brasil, já conquistamos, por iniciativa, conselho e ajuda americana, amplos poderes para gerir as artes no nosso país. Hoje nos cabe ditar, sem contestação, quem é e quem não é artista e classificar os primeiros de acordo com uma correta escala de valores que criamos.
Artista – Acho curioso você falar abertamente desse… desse… conluio;
dessa imoralidade como se fosse uma coisa normal, entende?
Bienal – Nós, simplesmente, estamos arrumando a casa, meu querido.
Colaboramos na criação de dois museus de arte moderna com a finalidade primordial de divulgar a arte formal, a mais avançada do mundo.
A primeira grande atividade pública do museu de São Paulo, você sabe, será montar a maior e mais importante exposição internacional de artes plásticas jamais imaginada no Brasil.
Artista – Estou sabendo, Os jornais e as rádios estão noticiando as andanças do ricaço americano que corre prá cima e prá baixo recitando catilinárias a favor do formalismo, metendo a lenha na arte social, na figuração.
Bienal – Falam do Doutor Nelson que nos ajuda com seus bons conselhos e experiência de quem orienta a tia MoMA, de Nova Iorque. Ele, veja você, um dos homens mais ricos do mundo com intimas ligações com o Departamento de Estado Americano, vem nos ajudando desinteressadamente há muito tempo…
Artista – Desinteressadamente? Essa é boa… muito boa. Só quero ver como vocês irão se arranjar para montar essa exposição, entende? Que pessoas irão se prestar ao “inocente” papel de candidatas ao júri para selecionar e premiar as obras, certo?
Bienal – Sem problemas, querido, já está tudo resolvido, ora.  O Museu está tratando desse assunto sem interferência de terceiros, de forma a assegurar a assepsia e pureza do evento.
Artista – Me desculpe, más isso cheira mal, cheira a imoralidade… me parece uma falta total de ética tratar de um assunto de interesse artístico-cultural desse porte, recebendo fortunas do governo, sem o aval dos artistas, dos intelectuais e das entidades culturais tradicionalmente ligadas à arte…
Bienal – Meu docinho seja realista, a arte hoje não se vincula mais às limitadas culturas regionais, é produto aculturado inteiramente cerebral, concebida pelas mais seletas, privilegiadas e sensíveis inteligências artísticas. Você acha que os americanos, queridinho, iriam criar uma organização desse porte para entregá-la à discussões menores entre grupelhos terceiro-mundistas, cada um deles a puxar a brasa para a sua sardinha? Tipo, uma ONU das artes?
Artista – O que eu sei é que a história nos mostra ter havido sempre livre confronto entre escolas artísticas, certo? À apologia do saber fazer artístico, ao debate sobre os caminhos e descaminhos da cultura e da arte, entende?
Bienal – Ora, e prestigiando desde sempre, preferencialmente, as vergonhosas obras de cunho demagógico, incensando a licenciosidade o proselitismo, o facciosismo? ora.  vamos dar um ponto final a tudo isso; esteja certo que nos caberá sempre dizer a última palavra sobre o que é e o que não é arte neste país. Estamos pagando por isso… pagando generosamente, pagando em dó-la-res, meu querido.
Artista – Você se referiu a obras que não são, nem de longe, obras vergonhosas, minha querida, são criações voltadas à nossa realidade, à
revelar as nossas cores, formas e temas, a nossa gente, as nossas esperanças e ideais, representativa de nossa cultura, entende?
Bienal – Você além de super repetitivo em sua argumentação ainda está preso a conceitos superados, meu muito adorado artista, você ainda é homem de mentalidade de Salões de Arte.
A propósito, me diga o que o “maravilhoso” Salão Nacional, o maior evento governamental existente hoje, tem oferecido aos artistas? Eu respondo que apenas um único e medíocre prêmio de viagem ao exterior, medalhinhas baratas e irrisórios prêmios de aquisição…
Artista – Certo, o prêmio de viagem é um muito bom premio. Super disputado, dá ao artista a oportunidade de viajar ao exterior para onde quiser, por dois anos, para aprimorar seus conhecimentos, certo? A verba permite até levar a família, entende?
Bienal – Ora, e você acha muito? Nós estamos oferecendo o reconhecimento internacional, meu amor, fazer o artista brasileiro ser aclamado no exterior, fazê-lo participe dos cobiçados leilões internacionais das Christies da vida. Ter o seu trabalho, biografia e retrato nas melhores revistas e jornais estrangeiros; ter suas obras expostas nas mais importantes instituições, em museus…
Artista – Museus que vocês montam ou influenciam; museus sem vínculo cultural, cheios de ar, sem razão de ser, criados apenas pela força do dinheiro para incensar as idéias defendidas por vocês, certo? Na verdade são mais um ponto de reunião, com bebidinhas e salgadinhos, frequentado por esnobes metidos a artista e granfinos enfastiados, certo?
Bienal – Tolices. Saiba que os nossos museus já nascem importantes,
com riquíssimo acervo, reconhecidos internacionalmente por serem
muito bem aparelhados.
Meu amor, vamos deixar de tolices. Esteja certo que estamos fazendo o que é o melhor a fazer. É do nosso interesse nos aliarmos incondicionalmente aos americanos; longe deles ficaremos eternamente marginalizados, a ver navios.
Artista – Considero tudo isso como uma ligação espúria a atuar contra
os nossos artistas e arte. Contra a nossa cultura…
Bienal – Longe disso. Estamos, neste momento, selecionando artistas,
escolhendo os trabalhos que serão expostos em São Paulo, mostra que
muito me emociona por me homenagear ao levar o meu nome.
Artista – Onde, seguramente, só irão expor os que rezam por sua cartilha, certo?
Bienal – Infelizmente não, meu querido, ainda não, ainda é um pouco cedo para isso, no momento vamos ter que fazer algumas concessões.  Logo, logo chegaremos lá, uma vez ser nossa obrigação e responsabilidade  mostrar o que se faz de melhor e mais avançado não só aqui no Brasil más no mundo,
Artista – Ou seja, vocês estão dando um adeus à liberdade de criação ao
acabar com as correntes estéticas, ao livre pensar… a arte como produto cultural. A partir de agora só será considerado como arte o que serve a vocês, certo?
Bienal – Entenda que a nossa responsabilidade é muito grande, querido,
há muitos interesses poderosos em jogo. Temos que preservar a arte da
licenciosidade das obras conspurcadas pela política… pelas questões sociais, alijar as obras engajadas… trabalhar por uma arte totalmente livre, pura.
Artista – E, seguramente, por serem da elite vocês irão facilmente se apropriar das verbas governamentais destinadas às organizações hoje existentes. Esvaziando os tradicionais salões de artes plásticas e outras iniciativas culturais tradicionais.
Bienal – Saiba que somos os mais bem preparados para gerir essas verbas e conquistar outras ainda mais gordas. A nossa organização, note bem meu querido, é internacional… e de vanguarda.
É de outro patamar; nós pensamos em alto e bom som…
Artista – Já vi que vai ficar em suas mãos a instauração de uma hierarquia patronal imoral, monopolizando ainda as relações com o exterior, certo?
Bienal – Não há nada de imoral nisso. Essa a nossa intenção, pensamos em ser um exemplo para os demais países da América do Sul e Caribe.
Conquistando, dessa forma, mais adeptos em torno de uma única organização internacional a trabalhar pela pureza das artes, pela liberdade do artista.
Artista – Um novo colonialismo cultural, certo? Com todas as despesas pagas por nós colonizados, aliás, como sempre; correto prima?
Bienal  (conciliadora) Ora, isso seria uma discussão sem fim, meu querido, inteiramente sem propósito neste momento. (amorosa) Vamos ser práticos, amor, vamos ganhar tempo, é o teu futuro que está em jogo e isso me preocupa muito. Te proponho uma coisa prática, imagine a sala de uma grande empresa, o que você colocaria na parede: uma pintura de um bando de favelados andrajosos ou uma belíssima pintura formal, imaterial, inodora,
combinando, como você disse, com a rica e sofisticada decoração do ambiente.
Artista – Nem uma nem outra, colocaria uma linda composição com figuras de nossa gente em nossos campos com pássaros e flores ou pescadores em belíssima marinha, entende? Uma floresta…
Bienal – Amorzinho queridíssimo, eu tinha certeza que você iria escolher uma floresta em chamas. O tema mais gasto por vocês artistas paleolíticos.
Artista – Fogo na mata, minha muito querida, amada e desejada prima é
tema de pintor acadêmico, certo? Eu sou modernista, lembra?
 
CENÁRIO – Na tela imagem de um belíssimo quadro figurativo.
 
Bienal – Pura mediocridade… passadismo… retroatismo (A Bienal se dá
conta da pintura figurativa e se mostra irada com a imagem – ríspida) … isso… isso… isso é puro idiotismo agudo em estado terminal… eu te ofereço, meu querido artista, a liberdade e você, meu doce amor, a renega!
(amorosa) Eu preocupada com o teu futuro e você relutante e ao mesmo tempo de olho cobiçoso no aveludado dos meus peitos, a avaliar o volume e o torneado das minhas coxas, o sugestivo relevo da minha bunda! … Já vi que você é mesmo do clássico tipinho nem trepa nem sai de cima; saiba, porém, meu queridíssimo, que comigo ninguém fica em cima do muro.
Saiba que te conheço de muitos carnavais, conheço bem as tuas manhas e malabarismos, sei das tuas andanças, sei tudo de você.  E, tem mais, você já está na minha más ainda nem desconfia disso. Com esse teu papo furado, você me cansou. Não vem por bem, beleza, vem no pau.
 
 (Pegando um pau de cerca dá uma paulada na cabeça do artista que cai ao chão deixando espalhados os quadros que se movimentam até formar um painel abstrato. Na tela é projetada a obra já reproduzida em capas de revistas estrangeiras, em catálogos em várias línguas, jornais, junto decifrões, cédulas de dólar etc.)
 
(Categórica) Agora que você sentiu o peso dos meus argumentos e ficou bem calminho, na minha, saiba que vou te por na Zona prá você faturar
rápido. (O artista ainda meio deitado procurando se levantar)
Você vai ter uma carreira meteórica, vou investir nisso, vou te mandar para a Bienal de Veneza, para as galerias mais vendidas da Europa, te mandar à tia MoMA…
Artista – Você me confunde, me atropela, me sufoca; fique calada,
certo? Chega! nem sei do que você está falando, entende?
Bienal - Vou te usar para fisgar os ainda indecisos te dando fama e muita
grana num estalar de dedos; quero que eles te vejam famoso e rico.
Preste atenção, é tudo muito simples, preste muita atenção que eu vou te revelar o grande segredo…
Artista  (Tapando os ouvidos) Eu não quero saber de nada disso, quero sossego… quero…
Bienal - Meu doce amado artista genial, é tudo muito simples, tudo se
ressume no seguinte: deixe de pintar coisas nossas que isso é bosta, compra revista estrangeira, amor, e copia a arte da moda, seja lá o que for. Entre, de imediato, firme e decidido no expressionismo abstrato que no momento, neste exato, único e preciso momento é a arte da moda.
Artista – E quando sair da moda? Eu acho que ninguém irá aguentar
quadradinhos e borrões por muito tempo.
Bienal – Para manter o público atento e atender as solicitações do mercado que exige novidades, a nossa central está estudando mudar de “escola” a cada três ou quatro anos, a exemplo da arte da moda — o trepidante universo fashion — que muda todo ano as coleções na primavera e inverno.
Artista – Grande exemplo, um incentivo a macaquice… que grande criação é essa, simplesmente alternando as cores e um nadinha no comprimento da saia, ora o do decote; cintura alta ou baixa: um louvor ao consumismo, um nojo. Tudo, apenas pura propaganda.
Bienal – A moda é um empreendimento exitoso, querido, fatura milhões. Vamos nos inspirar nessa técnica promocional; no momento certo iremos destacar um artista de nossa escolha que faça alguma modificaçãozinha qualquer no “estilo” imperante. Levamos, então, imagens de suas obras ao teórico de plantão, para que este produza a necessária verborragia fantasiosa sobre a novidade. “Criado” um novo mito acionamos a mídia afim de provocar a repercussão e o agito necessários para o seu bom desempenho no mercado de arte.
As Artista – Isso é uma aberração, fazer da arte um produto meramente comercial voltado exclusivamente para o entretenimento, para…
Bienal – Voltado, meu querido, para a liberdade do artista, preocupado em questionar a própria linguagem artística, inventando o inventável. Quanto ao teu futuro, não se preocupe, desgastado o expressionismo abstrato passaremos para outro ismo qualquer, que poderá ser chamado, por exemplo, de op, pop, body art e por ai afora.
Artista – Você não pode imaginar algo em português?
Bienal - Note que tudo passa a ter um valor maior quando expresso em língua estrangeira, principalmente o inglês. Veja que na hora de escolher entre o Bar do Zeca e o Zeca’s Bar, se prefere o último.
Lembre também que tudo  nos virá de fora e designado em inglês, nada de novo será criado aqui no Brasil.
Bom, o importante é que dessa forma tudo fica muito simples, você passará a imitar, com muita antecedência, o que a tia MoMA nos mandar de novidade lá de Nova Iorque.
Artista – Voltar a copiar o que nos vem de fora? Dar as costas à nossa realidade, à nossa cultura; é isso o que você propõe, certo?
Bienal – Me preocupo com o teu sucesso e este só chega, meu adorado artista do coração, para os afinados com o seu tempo. E o nosso tempo é o do formalismo, amanhã, quem sabe, até poderá voltar a ser um figurativo… um figurativo, digamos, inodoro e asséptico.
Relaxe, deslumbre-se, delire, dê asas à tua privilegiada criatividade, a tua ainda contida loucura interior, seja mais autenticamente você.
Artista – Você me pede para ser um oportunista alienado a procura de
fama e grana a qualquer custo, certo? E onde fica a arte, me conte?
Bienal – Não seja exagerado, nem é hora de melodramazinho de rádionovela barato.
Convença-se que livre do que nos é imposto pela realidade você é mais você, deixe a figuração e os temas sociais para a política, para os comícios, manifestos e abaixo-assinados, para o insano povão, você agora é elite.
Artista – Você quer o artista enclausurado numa torre de marfim, certo?
Bienal – Quero apenas que entre na real, criatura de deus! Entenda que ARTE, meu querido, é outra coisa: a – erre- te – e, é única e exclusivamente arte, palavra de quatro letras sem adjetivos, sem mais nada. Tenha sempre em mente esta verdade luminar: “a dimensão utópica da arte está contida nela mesma, e não no que está fora ou além dela”. Ou, se preferir, lembre do mesmo pensamento em sua versão poética: “há sempre um copo de mar para um homem navegar”.
Artista – Arte sem adjetivos? Não foi você que falou em arte americana, na avassaladora arte americana, certo? Copo de mar! Você está brincando, que palhaçada é essa? O que significa tudo isso?
Bienal – Deixe prá lá, querido, deixe prá lá, você ainda está cru, não está à altura de entender de alta filosofia. Relaxe, e não se esqueça de dar, com muita sobriedade e disfarçadamente, uma puxadinha de saco nos poderosos. Isso, meu amorzinho, também é de muita importância.  Me dê o braço, você é meu convidado de honra, temos toda a noite para dançar. Sinta-se famoso e rico. O baile, meu amor, é em minha homenagem, vamos mostrar a todos o quanto você é poderoso, genial, um dos grandes de nossa arte internacional, cosmopolita, inverossímil, única, majestosa, vencedora, dominadora, definitiva.
 
CENÁRIO – Na tela cenas de baile a fantasia em ritmo acelerado.
FIM DO SEGUNDO TEMPO
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TERCEIRO TEMPO
 
CENÁRIO – O mesmo ambiente. Tela sem imagem
 
Bienal e Sicillo vestidos a rigor.
 
Bienal  (caminhando de braços com Sicillo) — Padrinho, estou tão feliz, eu sei que mereço más nunca me imaginei ser, tão cedo, o centro, a rainha do que quer que seja.
Sicillo – Isso é só o começo, minha filha. Eu vou fazer de você, na nossa
América Latina, o mesmo que o Nelson fez da tua tia MoMA nos Estados Unidos: vou fazer de você a maior cafetina das artes plásticas jamais imaginada.
Bienal – Tremo de emoção só de pensar nisso, sou tão feliz, querido. Eu te adoro Padrinho, quero te cobrir de beijos.
Sicillo – Eu também te adoro, sonho sempre com os teus ardentes carinhos. Acredite, você está se saindo muito bem, filhinha, conquistando cada vez mais artistas embeiçados pelo teu poder, pela tua beleza e lábia.

Bienal – Ora, pena, amor, a gente ter tão pouco tempo para ficar juntinhos.
 

 
CENÁRIO – Na tela fotos da época, documentando
 
(Voz no áudio): “Do lado de fora do Edifício Trianon, militantes políticos e sindicalistas bradavam contra aquilo que chamavam de manobra imperialista e verdadeira farra de tubarões. Sob a conhecida garoa
paulistana, os manifestantes e curiosos assistiam ao desfile da granfinagem, enquanto os bancários exibiam suas tabuletas nas
quais se lia: Chega de fome! Viva a greve! Do lado de dentro do edifício,
Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado, sua esposa,
comandavam a festa oferecida a milhares de convidados, ciceroneando
o Ministro da Educação e Saúde, o Sr. Simões Filho, e a Sra. Vargas,
ambos representantes do Presidente da República.”  (1) 
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Sicillo – Hoje a parada vai ser dura. (indignado) É uma vergonha ter que receber os nossos convidados com essa turba mal cheirosa gritando na nossa porta. É um dos males da democracia, chega a dar saudades do Estado Novo que já teria mandado a polícia dar um jeito neles. (recitando) O nosso consolo é saber que estamos nisso em defesa da minha fábrica de latas, da livre empresa e… é claro que também pelo mundo livre… liberdade e democracia… pelo invejável modo de vida americano e… tudo o mais.
Bienal – Fique calmo Padrinho, fique calmo que hoje é o nosso grande dia. Os artistas vão estar enfileirados junto de suas obras nos reverenciando, agradecendo o bem que estamos fazendo a eles.
Sicillo – Acho bonito que eles se apresentem em fila, lembra o saudoso
beija-mão da monarquia. Foi idéia da Landa, sabe? para eles procederem assim. Até ensaiaram muito.
Bienal – E ainda vamos ter a fina flor, a nata da classe política, econômica e cultural do país presente à nossa festa. Oh! O Paizinho vai delirar com o meu sucesso. Ele que trabalhou muito por isso. Ele está nisso há muito tempo, né Padrinho; imagine fazer da tia MoMA, que era uma roceira, o que ela é hoje.
Sicillo – Ele soube aproveitar o pós-guerra, com a Europa na miséria e suas elites de joelho implorando pela ajuda americana.  Negociou duro, com muita lábia e incontáveis dólares por baixo do pano conseguiu impor a arte americana que era desdenhada na Europa: deu um cisco e se apossou do filé. De lambuja, passou a perna na França usurpando o lugar dela na liderança cultural.
Bienal — Paizinho disse que foi duro ter que convencer até os legisladores americanos da importância das artes e da cultura na luta contra o comunismo, pela liberdade e tudo o mais.
Fazê-los votar verbas para a CIA usar com essa finalidade.
Sicillo – É verdade, eles tinham horror do formalismo, da abstração; adoravam a tradicional pintura deles de brancas mansões escravagistas em verdes campos gramados. O Nelson conseguiu dar a volta por cima graças à tua tia MoMA e com a ajuda das Fundações Fairfield e outras, todas com fortes ligações com a CIA.
Bienal – Ele me contou também o seu lindo sonho de juventude: um
mundo com os artistas preocupados somente com o que lhes é caro, a
beleza da forma em si, o imaterial e o apoteótico das cores, o calor
vibrante da matéria, a visão do etéreo…
Sicillo – É o certo filhinha, todos voltados unicamente para a arte. Longe
de temas sociais, de regionalismos anacrônicos e ufanismos totalitários.
Bienal – Estando todos pensando somente em arte fico imaginando que grandes inovações poderão ser introduzidas ampliando o espaço das
artes para além de quadros nas paredes e esculturas em pedestais…
Sicillo – Tenho a certeza de que muito breve se fará das exposições
grandes espetáculos com vernisagens cênico-etílicas inesquecíveis.
Bienal – Ah! Padrinho, que bom, podia-se chamar um espetaculozinho desses de performance, né? Outra dessas brincadeirinhas bem que se podia chamar de happening. Assim as pessoas sem nada para fazer na vida terão com que se distrair um pouco. E, as pessoas, você bem sabe, gostam de usar palavras estrangeiras que, inegavelmente, dão status.
Sicillo – Certo querida, podemos sim. Somos inovadores, já estamos fazendo o milagre de transformar obra decorativa em Arte com A maiúsculo.
Esse Nelson é mesmo um gênio, com a bandeira de lutar contra o realismo socialista por ser arte oficial de Estado, expressão de ditadura, conseguiu impor a ditadura do formalismo em nome da liberdade de criação. E não é que uma incoerência dessas está colando.
Bienal – Pegando bonito, ora; coisa mais linda, linda, os amantes das artes nos aplaudindo e brindando o tempo todo.
Sicillo – É claro que ao custo de milhões de dólares da CIA, más vale o
gasto, é dinheiro bem empregado. Lutando por essa “liberdade” nas
artes, filhinha, vamos acabar com badernas como a de hoje, com as
greves… com a luta de classes… com o expansionismo totalitário…
Bienal – Ah! querido, que bom poder aproveitar toda essa liberdade para
aprimorar os delicados sentimentos dos artistas, né Padrinho. Vamos
fazer crescer neles, em doses maciças, nem que seja a martelo, a
importância da intuição, da sensibilidade, da subjetividade, vamos fazê-los chegar ao imaterial, ao divino…
Sicillo – Fazê-los esquecer o real… (pensativo) divinizar a arte?                                                                                                                                                                                                     Muito boa formulação filhinha, desvinculando-a de qualquer relação material. Alguém disse com muita propriedade que “a arte busca a arte e não o registro de fatos históricos. Ela é a própria história, é o próprio fato, não é a repórter do mundo, senão a biografia de si mesma”.
Bienal – Olha que maravilha de conceito, a arte pura, purinha: Branca,
Anglo-saxônica e Protestante, bem WASP; inegavelmente genial. Assim,
o certo é a arte se voltar para as grandes inovações tecnológicas e afins:
a cibernética, o virtual, o cinético, o desencarnado… o elétrico… o
profético… o asséptico, dar o maior valor às idéias, chegar ao âmago da
arte em si, fazê-la envelopada em si mesma.
Sicillo – Revelar a arte em sua grandeza musical tipo Si bemol maior opus
incertum, não é mesmo, minha querida?
Fazê-la entrar no universo onírico das impossibilidades em que tudo
é nada e onde o nada é tudo.
Bienal – De certa forma fazer a arte reviver o eterno Ser e o não Ser do
perturbado Hamlet, ao tomar em suas tremulas mãos o crânio exumado
do seu saudoso e traído pai.
Sicillo – Certo querida, fazê-la a semelhança da doce Ofélia, perturbada e anacrônica, a sonhar,.
Bienal – Melhor, por na fértil cabecinha do estudioso de arte a que se continue a ver num pinico de louça, não um corriqueiro desenho industrial para peça a ser produzida em série, más uma obra de arte à altura das esculturas de um Praxisteles, Michelangelo ou às pinturas de um Giotto, Rembrandt, Velásquez…
Sicillo – Esse pinico tem uma história interessante: usado como brincadeira, por um artista para colocar em cheque dois amigos numa aposta em júri de seleção, é hoje objeto de teses imensuráveis. Graças a esse, hoje, endeusado pinico foi possível avançar rumo a novas elucubrações, ao progresso, à arte experimental indagadora e lúdica, versátil e reverberativa… à inevitável e procurada evolução cronológica das artes.
Bienal – É verdade. Ele ainda está levando a discussões estéreis infindáveis que, por não levar a nada, nos favorece muito. Creio que o pinico nos fará chegar às últimas consequências do conceitual, às artes não objetuais… Ah, que coisa mais linda, Padrinho, chegar ao imponderável… A gnosiologia…
Sicillo – Fantástico, o acaso manipulado habilmente a nosso favor.
Bienal - Oh! Que maravilha, através do pinico chegar à grande e inolvidável alienação global total, usando das mais ardilosas teorias e de vocabulário pleno de uma série de expressões metafísicas incongruentes, super eruditas, exclusivas, únicas; uma linguagem “elevada” só entendida pelos nossos iniciados. Chegar às úmidas raízes pivotantes da unidade tempo-espaço, sempre em permanente e desejada mutação cósmica, ainda que incompreensível e complexa.
Sicillo – Parabéns, você está me saindo melhor que a encomenda.
Bienal – Maravilha Padrinho, muito lindo, eu disse coisas muito lindas
mesmo… (sonhadora) Seguindo essa onda chegará um dia que se poderá dizer, por exemplo, coisas assim: “em última instância, tudo envolve O homem e a vida, talvez o mais completo e metafísico abstracionismo, a mais total
arte de pura desmaterialidade e conceitualismo da arte matemática, os
maiores aleamentos da tecnologia, a informação epistemológica” e os
cambaus. E ninguém irá dizer que o que foi dito foi pura bobagem.
Sicillo – Gostei, querida, parabéns mais uma vez, você está no bom
caminho usando palavras-código de iniciados; saiba filhinha que
eu não entendi nada de nada mesmo. Más, fiquei tão impressionado
com a tua cultura
Bienal - Não se preocupe Padrinho, eu também não sei o que disse.
Na verdade não dizemos coisas para serem entendidas… sinta a
minuciosa seleção de palavras adrede escolhidas, aliadas à concatenação bizantina das frases. Elas indicam alta cultura do locutor; o ritmo, a musicalidade da oração. É isso o que importa. É igual a uma obra formal, não a entendemos más a apreciamos simplesmente por existir. Imagine a força dos sons desse enunciado quando dito em alemão gótico ou a beleza da forma quando escrito em sânscrito antigo.
Sicillo – Agora, filhinha, sou obrigado a discordar um bocadinho de você, querida. (em tom de segredo)Aqui entre nós, que ninguém nos ouça: o certo, filhinha, é que as pessoas apreciam esse forma de arte não apenas por existir, a apreciam por estar avaliada em dezenas de milhares de dólares. Fato que a leva a ser assunto de interesse da mídia. No impacto que isso, de ser assunto na mídia, causa nas pessoas bem situadas com verniz de cultas que, mesmo sem entender ou gostar, a adquirem de imediato para ostentar poder e, de sobra… especular.
Bienal – É uma grande jogada, né Padrinho. Todos sabem que dinheiro
dá poder, e poder dá dinheiro.
Sicillo – Muito bem expressado. Esse foi mais um grande feito do Nelson
que mobilizou a nata dos ideólogos financistas da CIA e, numa tacada genial conseguiu essa proeza inédita: dar um preço às obras de artista formal vivo à altura das obras consagradas do passado.
Bienal – Quadradinhos e borrões que, com uma manipulaçãozinha das
Christie’s da vida passam a valer milhões, um verdadeiro Midas, né
Padrinho. Nada como algo que valha dezenas, centenas de milhares de
dólares para embasbacar até o mais distraído.
Sicillo – Essa é a nossa vantagem, filhinha, é a nossa grande força. Ninguém tem a coragem de dizer que o rei está nu. E assim iremos levando, acredito que por muitas e muitas décadas (recitando) em defesa da minha fábrica de latas, da livre empresa, pelo mundo livre… liberdade e democracia, pelo invejável modo de vida americano e tudo o mais.
Bienal – Verdade Padrinho. As pessoas pensam assim: se vale tanto e eu
não entendo ou não gosto, vou ficar na minha para não passar por
ignorante ou de mau gosto. Até vou elogiar também, para me fazer de
entendida.
Sicillo – Mais uma coisa, filhinha, o Nelson me deu um toque, disse que
num futuro próximo, visando ampliar o mercado, nos será forçoso “democratizar” ainda mais a arte, passando a considerar como arte tudo o que se chamar de arte.
Bienal – Ah! Que bonito Padrinho, ora, que lindo, tudo, tudinho ser arte. todos serem artistas? … Genial! É o máximo, dar total liberdade para qualquer pessoa fazer o que quiser, e chamá-la de arte, né Padrinho, nada de ficar anos a fio aprendendo a desenhar, ter a chatice de passar dias, varar noites, semanas, anos, estudando técnicas disso ou daquilo, a inutilidade de ter de conhecer o maçante da história da arte, velharias cheirando a mofo, coisas do passado já esquecidas, pura perda de tempo...
Sicillo -- E tempo é dinheiro filhinha, o certo é que a pessoa é artista e
pronto, levamos sua obra à nossa insaciável mídia grande — já que mamamos do mesmo prato — esta a coloca nas alturas, ganha fama, o mercado recebe mais um produto para explorar e tudo fica bem resolvido para todos.
Bienal – Todo mundo artista, com a liberdade de poder inovar em
todos os sentidos, né Padrinho. De pintar com o próprio pênis ereto,
usado como pincel, fertilizando a tela com o seu sêmen misturado à tinta. De poder expor suas próprias fezes enlatadas, tendo sempre, é claro, o esmerado cuidado de etiquetá-las como se deve.
Sicillo – Certo filhinha, tudo ser arte, más só as obras voltadas para os nossos ideais e reconhecidas por nós terão valor. “Vamos fazer com que o artista se mova na direção que desejamos, por razões que ele acredite serem as suas próprias”.
Bienal – Ter a premonição inovadora de chamar de arte uma vaca no brejo, o esdrúxulo pingo na letra i, um artista se masturbando debaixo de rampa amorosamente construída por ele em galeria de arte, um…
Sicillo – Isso filhinha, isso é o certo. Viver a Liberdade, dar total liberdade a tudo e a todos…
Bienal - Ou ainda ter como arte o expor animais vivos, em putrefação ou empalhados, lixo de toda ordem amontoado aleatoriamente, sorvete de pauzinho envolto na maior erudição, vendido a varejo como escultura a se esvair; o delírio emancipado no lamentoso grito largado de forma torpe no ar… o inédito gargalhar do energúmeno no cio a coçar a barriga do rei de Roma em tarde de outono…
Sicillo – Maravilha, você está se superando, grande inovação considerar
a emissão de voz, como grito e gargalhada, como arte plástica.
Bienal - Poderemos, também, valorizar, Padrinho querido, a “pintura cega”, pintura “feita com os olhos vendados, uma vez que pintar sob privação de visão é um ato extremamente significativo”.
Sicillo - Como assim, querida?
Bienal – Na “pintura cega”, meu querido, fica bastante claro que o artista “não  busca territorializar o olhar tentando conquistar um suporte através do pincel, mas de entregar-se ao ato de pintar como sendo uma passagem do tempo”.
Sicillo- Entendi, certo… certo.
Bienal – “O que é vivenciado”, Padrinho, “é a pintura como tempo mais do que como espaço, como ato mais do que como resultado, como risco mais do que como certeza”, não é mesmo?
Sicillo- Certo, uma arte, podemos dizer,  oriunda da geometria sensível com uma certa dose da noção do budismo e da impossibilidade do homem diante da experiência de fazer um círculo exatamente perfeito.
Parabéns, querida, emissão de voz como arte plástica e “pintura cega” como algo significante? Ninguém ainda pensou nisso, querida.
Bienal – Eu também não, as coisas, você bem sabe, simplesmente acontecem… as vezes uma só palavra,(maliciosa, baixando a voz) você sabe muito bem disso… (sensual) o que me diz de suspiro – o doce suspiro da amante desejosa ao ver o amado em noite de estréia no romântico Trianon… diga, querido?
Sicillo – (em voz baixa) Cochicho, cicio! O que você me diz de: cicio do macho de arma engatilhada pronto para a batalha?
Bienal - – Adorei (ainda maliciosa)… e murmúrio, sussurro amoroso, cochicho ardoroso… arrulho… trejeito de gozo…
Sicillo -… E de bramido? gostou? diga?… e de urro, e uuuuuivo?
Bienal – (sonhadora) Adorei, amei, gamei; que momento lindo estamos vivendo.
Ah, querido, você não perde por esperar. É pena más me vejo obrigada a sair de mansinho deste clima mais que suspeito… um tanto quanto … lascivo que me deixou em brasa, ora…
Sicillo- Você está certa… os convidados devem estar chegando…eu te dou toda razão, lembre que vou descontar tudinho quando estivermos a sós entre brancos lençóis revoltos.
Bienal – (voltando a falar em tom natural) Que tal, Padrinho, passar a chamar de Arte Contemporânea ou Arte Atual, ou ainda Arte de Vanguarda, a obra que nos interessa. As demais seriam rotuladas de velharias… comprometidas…
Sicillo – Arte Contemporânea? Genial, simplesmente genial. Grande achado mercadológico esse, o de nos apossarmos do título de Arte Contemporânea para a nossa arte. É um grande acerto comercial, vende bem. As demais, mesmo que contemporâneas, serão chamadas de corrompidas, anacrônicas, ou de velharias ou comprometidas… antiquadas.
Bienal - E também: superadas ou inexpressivas, né Padrinho.
Sicillo – E um dia, filhinha querida, seguindo a orientação do Nelson,
será forçoso acabar com a avaliação da crítica de arte para dar mais liberdade aos devaneios, ao jogo de argumentação de idéias abstratas.
A crítica, filhinha, serviu quando a arte era produto cultural, agora como criação fechada em si, isenta de conotações alheias a ela, é inaceitável que seja avaliada através de análise crítica. E quanto ao valor monetário, nem pensar, filhinha, é coisa muito séria, é trabalho de especialista. Vamos, por essa razão, acabar com a avaliação da obra pelos críticos de arte, dando a maior força ao mercado… à efervescente curadoria.
Bienal – Assim mesmo não iremos jogar o crítico às traças, né Padrinho querido. (sonhadora) Iremos incentivá-lo e também o mestre e o doutor em arte a que ganhe o seu rico dinheirinho e mantenha o seu status de intelectual de vanguarda redigindo apresentações, folhetos e catálogos mediúnicos, legendando poeticamente engendradas imagens inenarráveis… construindo metamorfoses ambulantes, defendendo teses esfuziantes, escrevendo artigos e livros imateriais, megalômanos e insensatos; do jeito que eles gostam, né Padrinho querido.
Sicillo – É… pode ser filhinha, pode ser, poderemos deixá-los em segundo plano dando a máxima visibilidade à curadoria. Vamos endeusar a figura do curador, que passará a ser responsável direto dos destinos da arte.
Veja, vamos ficar de olho, acho que está na hora dos convidados chegarem.
Bienal – (consultando o relógio) Ainda temos uns bons quinze
minutinhos, Padrinho. Continuando o nosso papo, estou certa que se irá
incentivar as escolas, universidades, galerias, centros culturais,
fundações, museus etc. etc. a adotar como programa as nossas
inconclusas teses por mais estapafúrdias e escalafobéticas que sejam; a
alienação levada ao seu mais alto estágio verborrágico-elitista-
narcisista, e o emburrecimento a seu apogeu egocêntrico-repetitivo-
irreparável…
Sicillo – E dessa forma, minha querida, iremos acrescentar à nossa
biografia a glória de ter mudado o curso da história da arte.
Bienal  (surpresa e entusiasmada) Ah! Padrinho, verdade? Que coisa mais linda, ora…  a gente ter o poder de mudar o curso da história da arte? Mudar ao nosso bel prazer? Manipulá-la, fazê-la engabeladoramente bela, séria, invejada e culta?
Sicillo – Sim, querida, fazê-la ao nosso gosto
Bienal – A exemplo do feito no passado com os doutos debates teológicos, quando os mais proeminentes e admirados teólogos mega eruditos se perdiam em loucas, alucinantes e intermináveis explanações sobre quantos anjos cabiam na cabeça de um alfinete e, oh! glória excelsa, se detinham apaixonadamente na análise pudenda do sexo dos anjos?
Sicillo – Certamente que sim querida, certamente que sim.
Bienal - Usar de linguagem e temas além-filosóficos, afim de
transformar as artes num supra sumo elitista onde ninguém irá entender bulhufas, nequinhas de nada dos nossos mais altos desígnios.
Sicillo – Acredito firmemente que, com esse angu que estamos
cozinhando, ninguém irá enxergar um palmo adiante do nariz, querida.
Ou melhor, só a alta e excelsa intelectualidade pura irá “entender” da
coisa e, como sempre, aproveitar-se para, a título de aprimorá-la, tirar
uma boa casquinha dela.
Continue, continue, estou invejando a tua fértil e criativa imaginação.
Bienal - Ah, Padrinho, deixar tudo no imaginativo, nada no real,
manipular o ego dos nossos doutos dirigentes culturais, levando-os a
enriquecer as nossas teses com suas prosopopéias verborrágicas, de forma a semear a ambição e a esperança entre os demais incompreendidos artistas e intelectuais. Um trepidante e rumoroso agito a manter imóvel, silente e eterno o atual estado de coisas, tudo em nome da liberdade e da nossa abençoada tradição ocidental cristã.
Sicillo – Certo, filhinha, certo, (recitando entusiasmado) fazer tudo em defesa da minha fábrica de latas, da livre empresa… pelo mundo livre… pela.. pela
liberdade e democracia…
Sicillo e Bienal concluem a frase juntos -… e pelo invejável modo de vida
americano e tudo o mais.
Sicillo – Eu acredito, minha querida, que, lá pela tua 30,  31 exposição, “o corpo social, político e econômico” irá “atravessar (…) um estado de particular precariedade”(…) parecerá “evidente que as coisas não permanecerão como” sempre foram; nesse momento será “ainda difícil imaginar a forma, a direção, a proporção das mudanças”.
Bienal – E “a incerteza”, né Padrinho, “tem efeitos variados sobre o campo cultural – da manifestação à resignação, da cumplicidade à dúvida”.
Sicillo - Do suco ao bagaço…
Bienal – Do coice à mula.
Sicillo – Certíssimo, por essa razão essa tua exposição só poderá ser “concebida” com ajuda de “equipe internacional de curadores”.
Bienal – Certo padrinho, será a hora de apelarmos mais uma vez pela ajuda internacional, o estrangeiro sempre impõe muito respeito,não é mesmo?.
Sicillo - Se possível, curadores com nomes bem arrevesados escolhidos à dedo, nomes de difícil pronúncia, imponentes, que atuarão “em colaboração com as equipes internas da nossa “Fundação”.
Bienal – Seria ingrato de nossa parte deixar o nosso pessoal de lado. Imagine como os infelizes ficariam ao se verem afastados do rico dinheirinho que costumam mamar faça chuva ou faça sol. Ainda mais ao verem os estrangeiros belos e folgados nadando em dólares se exibindo faceiros.
Sicillo – Dinheirinho, diga-se de passagem, que amealhamos com muito esforço aqui e ali: um tostãozinho da prefeitura, um quase nada do estado, uma miséria da união, espremendo, espremendo com toda a força a providencial lei Ruanet e outros quintais.
Bienal – Mas, por outro lado, Padrinho, faremos esses curadores trabalharem sem descanso. Vamos “fazer que se aprofundem no processo de pesquisa, seleção, produção e montagem” dessa exposição.
Sicillo - Dessa forma não haverá, minha querida, “tema ou recorte predefinido servindo de partida para” a mostra.
Bienal – Certo Padrinho, “ao invés de predeterminar a natureza ou os significados da prática artística, os curadores” irão optar “por delinear linhas de interesse e, ao longo dos meses subseqüentes, se” debruçarão “em pesquisas, intercâmbios e conversas que ajudarão a dar forma à mostra”.
Cuidando sempre, é claro, que tudo isso resulte no que nos interessa
Sicillo – Será um “processo, que se” pretenderá “acessível a todos do começo ao fim”, e “ancorado numa série de encontros abertos em diferentes cidades brasileiras, num workshop sobre “Ferramentas para Organização Cultural” que se” estenderá “ao longo de” todo um ano “num cronograma intensivo de viagens pelo Brasil e pela América Latina”.
Bienal – Aqui entre nós: no fundo estaremos patrocinando uma grande mamata para meia dúzia de sumidades que, esperamos, muito nos ajudarão, não é verdade?
Sicillo - Vamos chamar de prêmio, querida, estaremos patrocinando um prêmio, uma vez que, pelo serviço prestado, bem o merecem.
Bienal - Note, querida, que “desse cenário de instabilidade” provirá “o interesse da curadoria pela idéia de “virada” como fenômeno e de “trans-” como conceito.
Sicillo – E de rebordosa inodora como princípio.
O que sugere, minha querida, que haverá “uma mudança em curso no nível social, ainda sem objetivos de maior alcance. Essas transformações são provavelmente irreversíveis (não é possível devolver a tinta ao tubo), mas acontecem sem uma direção clara – são desordenadas, ou talvez até desonestas e também estratégicas”.
Bienal - Confirmando que de grão em grão a galinha enche o papo, não é mesmo, querido?
Vale lembrar que “não operam por meio de representações e estruturas “legítimas”, mas emergem como respostas urgentes a situações específicas e resultam numa mudança que não é progressiva ou cumulativa (ou seja, moderna)”.
Sicillo – “Diante dessa situação”, minha querida, “a inconstância pode ser vista como uma virtude; algo capaz de permitir saídas estratégicas ou intervenções pontuais”.
Bienal - “Assim, a intervenção pretendida pela equipe curatorial (…) no meio artístico-cultural contemporâneo deve acontecer pelo apoio a indivíduos e/ou grupos no desenvolvimento de projetos colaborativos que questionem as definições tradicionais de “artista”, “participante”, “consumidor” e “espectador”.
Sicillo – Completando o teu raciocínio, eu diria que “em suas pesquisas, os curadores buscarão respostas afetivas para as condições” do momento, “deixando textos, discursos e explicações em segundo plano.
Bienal – Nada que leve a ter as coisas claras. “Por meio da arte”, Padrinho querido, “o projeto é chegar ao que parece não existir, ao que pode ser experimentado, mas não articulado em palavras; ao que pode ser sentido, mas não explicado; àquilo em que se possa acreditar, mesmo que não possa ser provado”.
Sicillo – Ao que se faz e não se sabe, ao que sugere e não se explica. “Essas são coisas usualmente ignoradas quando se trata da inflexível lógica da eficiência, da competitividade e da sobrevivência econômica”.
Bienal – Não esquecendo, é lógico de valorizar a sempre louvada meritocracia.
Sicillo – Maravilha. Quero ressaltar que “finalmente, vale mencionar que cada aspecto” dessa futura exposição ” (pesquisa, arte, produção discursiva e expografia) deve ser entendido como processo educativo problematizador, como um território exploratório aberto”.
Bienal – Com os curadores a “oferecer ao público uma gama de experiências dinâmicas conectando o espaço público interno do pavilhão com seu entorno – as pessoas no parque, a cidade, o continente, o mundo – abordando cada uma das instâncias a partir de diferentes formas e modalidades de prática artística”. Em síntese: conectar o espaço público ao cosmos, à última estrela da derradeira galáxia. Conectar o artista aos seus mais puros desígnios.
Sicillo – Tendo sempre em mira a subordinação da arte à arte, sem nada que envolva o artista à realidade circundante. A arte sempre pura, puríssima, imaculada, leve e solta, esbelta e desejada.
Bienal – Que a conduza a um processo de desconstrução visando somente à experimentação, à mistificadora procura de elevados novos, misteriosos e insondáveis caminhos: uma deusa, como você descreveu, branca, loira, irresistível, intocada (uma vez que a virgindade ainda vale ouro).
Sicillo – Propor para discussão temas inteligentes e cultos do tipo: “Qual o lugar de oposição fundamental entre o sensível e o inelegível? Quais são as competências especificas para a construção do pensamento de arte. Haveria alguma?”
Sicillo – A coisa é por aí. Não esquecendo nunca de fazer a arte ser dinheiro vivo, sempre pronta e aberta à especulação, com milhões e milhões de cheques e depósitos em dinheiro circulando em paraísos fiscais… .
Bienal – Claro, para manter essa dupla dinâmica, arte/dinheiro, devemos incentivar intermináveis experimentos de toda ordem, né padrinho, invadindo todas as áreas: do sólido ao líquido e gasoso, do infinito ao infinitesimal, da concepção ao funeral, da ciência à superstição, do luxo ao lixo.
Sicillo – Certíssimo, cumprindo de forma criativa o que nos foi designado pelo Nelson: tornar o artista inerme, de olho fixo somente na apologia da
arte e suas lucubrações, o mantendo distante da realidade circundante, preservando suas obras das incontáveis influências do cotidiano freneticamente contaminante.
Bienal – Vamos extrapolar querido, vamos fazer mais do que o combinado com o Paizinho, ele vai adorar, você vai ver. Imagine “expor” salas e até grandes espaços totalmente vazios. Esses espaços não expositivos seriam destinados aos estudiosos, críticos, artistas e público em geral para mentalizar seus conceitos sobre o não-visto, a não-arte, a não-exposição, o não-saber o que fazer da porra desta vida.
Sicillo – Hummm, não sei não. É preciso muita atenção minha querida,
precisamos refletir mais sobre o assunto. Isso mexe com o mercado
que, você bem sabe, sempre berra por qualquer besteirinha Veja que se irá incentivar uma arte onde o que importa é o artista e suas idéias, dando como dispensável a obra em si.  A seguir se irá projetar espaços vazios, livres de obras de arte? Ora, sem obra material do artista e com a sala vazia, o mercado de arte fica sem ter o que vender, entregue às moscas.  Sentiu o promíscuo peso da questão?
Bienal – Ora, querido, essa ausência temporária ou até parcial poderá ser mais perturbadora do que a presença material da própria arte, provocando protestos de artistas inconformados, levando curiosos à mostra, mantendo a alta intelectualidade ocupada a montar teses, conjecturando, polemizando, alimentando teorias, inventando dogmas, parindo alfarrábios, organizando pesquisas sobre a pertinência do ato. A mídia grande pondo em votação se a idéia é de uma suprema não-genialidade narcisista ou de uma oportuna não-ignorância leviana. Sempre, diga-se de passagem, tudo isso com certo tom marcadamente pos-moderno.
Sicillo – À primeira vista seria, de fato, um bom achado para a mídia e também para os intelectuais em disponibilidade poderem se pavonear à vontade; um ótimo agito para esquentar o público numa época de baixas vendas.
Bienal – Certíssimo querido, é caminho seguro para manter a nossa política de alienação e emburrecimento geral funcionando a todo vapor.
Sicillo – É, talvez venha a ser também um apelo comercial altamente sedutor. De qualquer maneira vamos matutar um pouco mais sobre o assunto antes de consultar o Nelson.
Bienal - (Eufórica) Oh, querido, veja que maravilha que acaba de me ocorrer: prever ainda que vá acontecer uma corrida ao mercado de arte por este favorecer a especulação e a lavagem de dinheiro, em razão de se prestar à manipulação por trabalhar com mercadoria de estranhada avaliação de valor e de somas mirabolantes…
Sicillo  (Interrompendo) — Bem, filhinha, (baixando a voz em tom de segredo) lavagem de dinheiro é coisa corriqueira, mas é assunto que não se fala, nem com a mulher mesmo nos excelsos, loucos e inesquecíveis momentos de cama.
Voltando ao que eu dizia… bom… eu dizia?  … Ah, sim… dizia… dizia que é preciso entender que o valor de uma determinada obra de arte não se fará mais através de conceitos culturais e do saber fazer artístico, se fará com quem entende realmente da coisa: com o digníssimo senhor dinheiro, com o comércio no atacado e no varejo, nos sagrados leilões, no sacrossanto altar do mercado de arte.
Bienal – Todos ganhando fama e milhões, até mesmo alguns dos nossos bem escolhidos artistas aqui do Brasil, né Padrinho querido.
 
CENÁRIO – projeção de algumas imagens de obras abstratas e figurativas misturadas com flagrantes de público apreciando quadros,
mostradas de forma correta e de cabeça para baixo. Finaliza com a palavra FIM invertida, depois de algumas tentativas é corrigida:
 
FIM.
(1) (Jornal Hoje, 02/09/1951 e 21/10/1951)”
 
Luiz Ventura – maio 2011 – revisto em 30 de novembro de 2013
 
 
segue texto
ARTE e arte ou
A Bienal de São Paulo, enclave do colonialismo cultural
 
ARTE e arte
ou 
A BIENAL DE SÃO PAULO, ENCLAVE DO COLONIALISMO CULTURAL 
Algumas considerações sobre o tema. LUIZ VENTURA – 2011
Diante da geléia geral global a que transformaram as artes plásticas, somos levados a refletir sobre a sua origem e a indagar que forças mantêm esse anômalo estado de coisas.
RECORDANDO FATOS
Com o fim da II Guerra Mundial em 1945, o mundo se viu dividido entre duas grandes potencias – os Estados Unidos e a União Soviética – que passaram a disputar a hegemonia global nos campos político, econômico, militar e cultural. Tal disputa se constituiu na guerra fria, (1).
No campo da cultura desencadeou-se o que veio a ser  conhecida como guerra fria cultural. (2) O Departamento de Estado dos Estados Unidos organizou um grupo de agentes dirigido pela Central Inteligence Agênce – CIA para se ocupar da questão cultural. Nas artes plásticas os ideólogos da CIA escolheram o expressionismo abstrato (3) a fim de erradicar o realismo socialista (4), estilo oficialmente adotado pela União Soviética. De roldão passaram a combater também as artes figurativas: o realismo social, o muralismo e toda corrente voltada para a identidade nacional, empregando nisso centenas de milhões de dólares manipulados pela CIA.
Assim, graças aos milagrosos dólares da CIA foram financiados congressos, conferências, palestras, publicações, exposições   etc. nacionais e internacionais; foram montados novos museus e reformulada a orientação de muitos já existentes, fundações e bienais foram apadrinhadas e outras foram criadas, mudando o curso da história da Arte.
Em poucos anos (de meados da década de 1940, início da de 1950) como num passe de mágica, conseguiram cooptar muitos dos profissionais e estudiosos de Arte da época (críticos, museólogos, historiadores, professores, marchands, galeristas, divulgadores, artistas etc.) os quais passaram a considerar o expressionismo abstrato como o supra-sumo das artes, relegando para a categoria de segunda classe as obras figurativas. (5)
Essa intervenção, que teve início em 1950 com a imposição do expressionismo abstrato em todo o mundo ocidental, deslocou a arte do campo da cultura para o terreno político, fato inédito e premonitório na história da arte.
UM POUCO DE BRASIL
A Semana de Arte Moderna de 1922  teve o grande mérito de tornar pública a posição de um grupo de intelectuais dedicados a “descobrir” o Brasil, estudando a nossa realidade, buscando interpretar os nossos anseios, apropriando-se de nossas formas e cores; deixando, assim, de imitar o que nos vinha do exterior.
Tivemos então, em todas as áreas, uma explosão criativa de obras autenticamente brasileiras a competir em pé de igualdade com o melhor do que já se fez em todas as épocas no mundo. E, apesar de tal explosão dispor de uma divulgação ainda precária, conquistou o respeito e a admiração dos círculos nacionais e estrangeiros mais exigentes.
Foram quase quatro décadas de grande idealismo,  entusiasmo e confiança, durante as quais vingou e se impôs o florescer de uma cultura autônoma  apta a conquistar a admiração do mundo.
No Brasil a interferência da CIA se revelou desde sua criação, ao término da II Guerra Mundial, através de repetidas viagens a nosso País de Nelson Rockfeller, bem como da atuação do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA), entidade comprometida com a política  cultural dos EUA, e com a colaboração de empresas multinacionais atuantes no Brasil, como  a Esso, General Motors, General Eletric, Shell  e outras.
Em 1948 é fundado o Museu de Arte Moderna de São Paulo tendo como modelo museográfico  o do MoMA de Nova Iorque, presidido por Nelson Rockfeller, que forneceu instruções e doou obras de arte abstratas para a nova instituição.
Em 1948 é fundado o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro tendo à frente um grupo de empresários presidido por Raymundo Ottoni de Castro Maya.
Em 1951 foi promovida a 1a. Bienal  de Artes pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo. (6)
A Fundação Bienal foi fundada em 1962 e a sua primeira exposição aconteceu em 1963: a 7ª Bienal de Artes de São Paulo.
Estas organizações foram criadas através de acordos entre empresários brasileiros e Nelson Rockfeller (magnata financeiro e peça-chave na política de expansionismo cultural do Departamento de Estado Norte-americano no pós- guerra).
Tendo estes museus e a Bienal de São Paulo como modelo a Arte em nosso país retrocedeu aos anos anteriores à Semana de 1922, voltando a imitar o que nos vem de fora, produzindo aqui no Brasil obras padronizadas, que vão seguindo as variadas modas idealizadas no Exterior,  todas absolutamente idênticas às executadas pelo mundo afora. Uma verdadeira macdonaldtisação das artes plásticas.
Como essas organizações continuam com a mesma orientação implementada há mais de 60 anos pelos ideólogos da CIA, me permito sugerir que dediquem algum tempo a esta reflexão: “Num país tão cioso de sua independência o que levaria, os nossos doutos dirigentes culturais, a agirem de forma tão submissa?”
CONCLUSÃO
Sabendo-se que a atual geléia geral global é ainda rescaldo da guerra ideológica iniciada há mais de 60 anos e que continua, portanto, a ser uma questão primordialmente política;
sabendo-se que meia dúzia de instituições poderosas, sediadas em países ricos, manipulam os destinos das artes plásticas no mundo todo;
sabendo-se, também, que as suas ações vêm sendo executadas de forma organizada, metódica e disciplinada por tantas décadas;
somos levados a crer que essa ditadura da “arte contemporânea” não é fruto de processo aleatório, más sim, que essa ditadura, forjada pela CIA, ainda é hoje por ela monitorada.
Razão para se tratar dessa questão unicamente do ponto de vista político, descartando-se, por inviável e insensato, tratar desse descaminho como se fora assunto cultural ou artístico. (7)
Essa, a razão de acreditar que no cimo da pirâmide de ganhadores dessa geléia geral global encontra-se, a ganhar de goleada, os Estados Unidos — em conluio com os países ricos da Europa — por manter a hegemonia cultural global, conquistando mentes e corações a defender os seus desígnios e a partilhar de suas causas. Em outras palavras, as grandes potências usando e abusando do conhecido colonialismo cultural.
Não se tem conhecimento de fórmula mágica para dar fim a essa geléia geral global, questão que envolve princípios básicos e éticos. Entre eles o da liberdade de criação artística, da prática da democracia e do respeito aos conhecimentos do saber fazer artístico.
Pode-se, sim, dar início ao desmonte dessa máfia global ao exigir, aqui no Brasil, que a Bienal de São Paulo se desvincule dessa rede colonizadora e se volte para a nossa realidade, para a cultura do nosso país.
Exigir que se democratize, quesito básico para toda organização que recebe verbas e benesses públicas.
Exigir ainda que tenha ética, passando a respeitar a liberdade de criação, oferecendo a todas as correntes artísticas as mesmas oportunidades.
E fazer com que respeite, prestigie e incentive o saber fazer artístico. (8) Uns poucos intelectuais no mundo, inclusive no Brasil, vêm se destacando na critica a essa geléia geral global, excrescência colonialista nas artes plásticas. É com orgulho que nos juntamos a eles esperando que outros venham a fazer o mesmo (9).
Luiz Ventura, maio 2011.
EM TEMPO: Eu acredito que a Arte, sendo criação do homem é produto da sociedade e da cultura em que é gerada. É fonte de conhecimentos, do livre pensar, reveladora de sentimentos e testemunha  dos ideais e caminhos percorridos pelo  homem.
Em síntese a Arte é “uma forma de conhecer e representar o mundo”. Da mesma maneira que a Ciência  ou a História não se encerram em si mesmas, a Arte não pode, igualmente, ter finalidade em si mesma.
Acredito também que o direito à liberdade de criação é inalienável, imprescindível e inegociável. Somos a favor da diversidade cultural: de movimentos, correntes e escolas artísticas, tanto formais como figurativas; acreditamos na força autônoma e na excelência da arte brasileira.
É preciso ter claro que a CIA não criou o impressionismo abstrato ela o usou da mesma forma que usaria o realismo socialista se este se prestasse a seus desígnios.
“E é muito importante que se compreenda claramente que a arte não é luxo nem adorno. A história mostra-nos que o homem paleolítico pintou as paredes das cavernas antes de saber cozer o barro, antes de saber lavrar a terra. Pintou para viver.” Sophia de M.B. Andersen 
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NOTAS
(1) A Guerra Fria tem início logo após a II Guerra Mundial entre os Estados Unidos, liderando os países capitalistas, e a União Soviética a frente dos países socialistas.
Chamou-se de guerra fria por ser um conflito restrito ao campo ideológico, não ocorrendo embate militar entre os contendores.
O campo socialista possuía um sistema baseado na economia planificada, partido único, igualdade social e ditadura do proletariado. Os Estados Unidos defendiam a expansão do sistema capitalista, baseado na economia de mercado, na representação de vários partidos políticos e na propriedade privada.
(2) Ver “Quem pagou a conta?” da pesquisadora inglesa France Stonor Saunders.
(3) O Expressionismo Abstrato foi um movimento criado em Nova Iorque em 1940. Difundido pela CIA acabou exercendo forte influência no mundo ocidental nas décadas de 50 e 60 do século passado. Foi o primeiro movimento artístico levado da América para a Europa, caminho inverso ao tradicional: da Europa para a América.
O Expressionismo Abstrato não expressa a cultura de onde é criado. É criação cerebrina que se insere na categoria de arte decorativa, um dos ramos das artes aplicadas. É tão engenhosa e bela quanto a arte de dobrar papel ou da arte de dar nó em barbante (a exemplo dos nós de marinheiro). São obras que não provocam emoção por não atingir o córtex cerebral. Ver em “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” do Dr. Oliver Sacks, o relato “O artista autista”.
(4) O Realismo Socialista foi o estilo artístico oficial da União Soviética entre as décadas de 1930 e 1960. Tinha por objetivo incentivar os intelectuais a criar obras voltadas para a construção do comunismo. Com a instrumentalização da cultura a tendência, nas artes plásticas, foi a da produção de obras cada vez mais estereotipadas. Ver Andrei Jdanov, 1896 – 1948.
(5) A entrada esmagadora e triunfal do expressionismo abstrato, na década de 1950, nos principais centros difusores de artes plásticas em escala internacional, através de intensa cobertura em todos os meios de comunicação da época,  fez com que, de uma hora para outra, obras de Portinari, Di Cavalcante, Segall, Clóvis Graciano e demais artistas de grande prestigio, passassem a valer  (em dinheiro) muito menos que uma obra de borrões executada por um principiante desastrado, incapaz de desenhar um simples ovo,
(6) A Bienal de São Paulo é um enclave colonialista que vem se prestando a fazer o trabalho sujo contra a Cultura e a Arte, promovendo a alienação e o emburrecimento geral irreversível. Foi criada, através de acordo entre empresário brasileiro e Nelson Rockfeller, para combater o comunismo, usando do expressionismo abstrato no combate ao realismo socialista. De roldão passou a combater também o realismo social, o muralismo e toda corrente voltada para a identidade nacional. A Bienal foi a introdutora do expressionismo abstrato no Brasil, corrente artística onde a CIA empregou milhões de dólares em sua difusão e na promoção do pintor  norte-americano Jackson Pollock, 1912 – 1956, carro chefe dessa corrente.
(7) A insensatez do descaminho da “arte contemporânea” fica mais gritante ainda quando passaram a considerar o artista e a Idéia como a peça principal na obra de arte, relegando como secundária ou dispensável a obra propriamente dita. Fato que nos leva a recordar os doutos do passado a tergiversar sobre quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete: puro desvario de elitistas alienados.
Vamos levar essa proposta à musica: no conserto os músicos em seus lugares com os seus instrumentos. O maestro dá início ao espetáculo lendo a sua incongruente Idéia para a platéia. Terminada a leitura, músicos e maestro agradecem os aplausos. Indo da Arte para a Ciência, imagine uma sala de cirurgia: a equipe médica a postos, o paciente anestesiado à mesa de operações.
O cirurgião, então, dá início a sua única função nesse episódio: passa a relatar a sua mirabolante Idéia do processo aos presentes…
(8) Para acaba com o desatino programado em que se encontram as artes plásticas
é preciso dar um basta à geléia geral global, obra de meia dúzia de poderosas organizações sediadas em países ricos.  Associadas para esse fim e ligadas intimamente ao mercado de arte, se autopromoveram a árbitro das artes plásticas globais, em detrimento da cultura e arte nacionais. Em detrimento, inclusive, da cultura e arte desses mesmos países onde estão sediadas.
O desmonte dessa máfia colonizadora global é hoje possível, dado ao grande número de pessoas com consciência do papel que essa máfia desempenha.
O desmonte pode ter início aqui no Brasil através da democratização da Bienal de São Paulo, fundação pioneira em nosso continente para executar o trabalho sujo contra a cultura e as artes.
Para que isso venha a ocorrer é preciso que se passe à ação:
Incentivando os estudiosos de Arte e Cultura a que pesquisem a Bienal de São Paulo e os Museus de Arte Moderna de São Paulo e Rio de Janeiro desde os seus primórdios;
solicitando às pessoas — com destaque para os artistas plásticos e estudiosos de artes, as associações e sindicatos de artistas – que demonstrem publicamente a sua indignação e repúdio à política adotada pela Bienal;
que as galerias, instituições culturais e publicações promovam e divulgue os jovens artistas com obras voltadas para a nossa realidade e cultura, preocupados com o saber fazer artístico;
que se promovam ações de esclarecimento junto aos legisladores, defensores da nossa soberania, do verdadeiro papel desempenhado pela Bienal de São Paulo. Dando especial atenção às empresas e órgãos públicos que repassam verbas e/ou benesses para a Bienal, principalmente os órgãos públicos da área de Educação e Cultura.
(9) Se destacou como crítico dos reais objetivos da Bienal de São Paulo na década de 1950, o jornalista e diplomata Fernando Pedreira através da revista Fundamentos. Nos dias de hoje temos conhecimento como críticos dessa geléia geral global o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, o escritor, poeta e jornalista Affonso Romano de Sant’Anna, e o jornalista Luciano Trigo.
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Carta-circular sobre a Bienal (documento premonitório escrito em 1953)
Em obediência a solicitações prementes dos colegas, visando à unidade de ação de todos os pintores, escultores e gravadores, frente aos problemas focalizados pela II Bienal, a comissão de artistas abaixo-assinada vem submeter ao seu exame as seguintes declarações:
1 – O regulamento da II Bienal do MAM de São Paulo não oferece garantias aos artistas, como garantia profissional, e nem à cultura, como expressão do progresso artístico nacional.
2 – Os poderes exorbitantes que a si mesma outorgou a diretoria do MAM
desequilibraram viciosamente qualquer relação entre essa entidade civil e os artistas.
Com efeito, não há possibilidade de contrato que não implique numa “sociedade      Leonina” quando uma das partes aliena todos os seus direitos enquanto a outra centraliza em suas mãos todos os poderes, isentando-se de obrigações, à medida que
arbitra o acumulo dos seus direitos. O que aí passa a existir é apenas uma relação entre o amo e o servidor.
3 – A diretoria do MAM nomeia três dos cinco membros do Júri de Seleção, indica (com exceção de um) todos os componentes do Júri de Premiação e atribui-se plenos poderes quanto à colocação das obras no recinto da exposição.
4 – Entregas tais poderes a uma diretoria eclética e ilegítima, pergunta-se: Quem elegeu a diretoria do MAM? Quem faz parte dessa diretoria?
5 – O problema, evidentemente, deve ser analisado em seus fundamentos, não sendo possível aceitar-se um debate condicionado a premissa falsa e enganosa de que a situação acima descrita é legítima e digna, portanto   , da nossa adesão. Urge que os artistas arregimentem as suas forças contra essa alarmante tentativa de burocratização, controle externo e deformação da organização artística que acarretam fatalmente: a) o perigo de ser negado aos artistas, sem qualquer justificativas estéticas, o direito profissional de expor suas obras; b) a instauração de uma hierarquia falsa e arbitrariedade valores; c) a monopolização pelo MAM da verba governamental destinada aos artistas e ao florescimento das suas organizações; d) a centralização e fiscalização do mercado de arte; e) a alteração dos canais normais das relações artísticas internacionais, depondo nas mãos de um pequeno grupo não representativo da cultura os destinos das artes plásticas nacionais no consorcio mundial; f) a instauração de um regime patronal no campo da organização artística, nocivo a todos os artistas e, consequentemente, ao progresso da cultura.
6 – Impõe-se, como réplica a essa tirania de esbulho cultural, a reivindicação das seguintes medidas: a) reconhecer aos artistas o direito de eleger três dos cinco membros do Júri de Seleção, conforme o disposto na lei no. 978, de 12-2-1951, que -regulamenta o SPAM; b) assegurar uma participação mais ponderável dos artistas, através dos seus representantes, no Júri de Premiarão; c) incumbir o Júri de Seleção da colocação das obras no recinto da exposição; d) exigir que a indicação dos dois nomes restantes do Júri de Seleção, a ser feita pelo MAM, preceda  de 15 dias o término do prazo para entrega das fichas de inscrição.
7 – Como remate deste plano de ação, a Comissão indica, por merecedores do voto de todos os artistas, os nomes de: José Geraldo Vieira, renomado     renovador da técnica do romance no Brasil, crítico de arte e senhor de larga visão artística que lhe faculta um julgamento sereno e amplo (candidato de São Paulo); Mário Barata, crítico de arte
da imprensa carioca (candidato do Rio de Janeiro); Clóvis Graciano, pintor conhecido e de valor reconhecido em todo o país.
8 – Comprometem-se os candidatos a fazer valer o direito de participação de todos os artistas na II Bienal do MAM de São Paulo, sem que lhes turve o julgamento a diversidade das correntes estéticas.
aa) Alfredo Volpi, Virgínia Artigas, Valdemar Cordeiro, Moussia P. Alves, Roque de Mingo, A Simeoni, Caetano Fracarolli, Armando Pecorari, Odeto Guersoni, Anatol Wladyslaw, Emile Abi-Haiddar, Bassano Vaccarini, Renina Katz, Susana Izar, Luiz Sacilotto, Valter Levy, Takeshi Suzuki, Lotar Charoux, Luiz Ventura, Casemiro Fejer, Alzira Pecorari, João de Augustinho, Gilde Magalhães, Francísco Rebolo, Salvador Rodrigues Jr., Maurício N. Lima, Teresa Nicolau, M. Ruben, João Simeoni, Mário Gruber Correia, Maria da Glória Leme, Ataíde de Barros, Celina G. Pelizzari e José Lanzelotti.
******************* RECORTES NA NET*************************
“A palavra final que leva ao encaminhamento do processo de criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo sob a liderança de Matarazzo surge numa reunião de Nova York, da qual ele participa, quando bolsista nos Estados Unidos. Carleton Sprague Smith é o porta-voz de Rockfeller, falando do seu interesse pela participação daquele empresário no projeto”.
(…) “O MAM de São Paulo foi uma das instituições organizadas a partir desse estreitamento das relações entre a burguesia industrial brasileira e as grandes corporações norte-americanas. Fundado em 1948, mas inaugurado em março de 1949, o MAM chamou para si toda a polêmica que girava em torno da ascendente arte abstrata, organizando, para a sua abertura, a mostra Do figurativismo ao abstracionismo que, apesar do nome, só trazia trabalhos abstracionistas.
“São Paulo em PerspectivaPrint version ISSN 0102-8839São Paulo Perspec. vol.15 no.3 São Paulo July/Sept. 2001doi: 10.1590/S0102-88392001000300004

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“Um fato curioso exposto no livro de Saunders é o apoio que a CIA e seus aliados no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) deram ao expressionismo abstrato de Jackson Pollock e outros, considerado um antídoto à arte de conteúdo social. Nelson Rockfeller, um dos fundadores do MoMA, dizia que o expressionismo abstrato era “a pintura da livre empresa” e os ideólogos da CIA o chamavam de “a verdadeira antítese do realismo socialista”
.www.fclar.unesp.br/perspectivas/v27_tota.p

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“A questão não é se os intelectuais ou artistas podem ou não tomar partido ou assumir uma posição progressista numa ou outra questão.
O problema é a crença difundida, entre escritores e artistas, de que expressões sociais e políticas antiimperialistas não devem aparecer em suas canções, pinturas e escritos, se querem ter sua obra valorizada como trabalho de substancial mérito artístico. A vitória política duradoura da CIA foi a de convencer intelectuais e artistas de que um engajamento sério e firme à esquerda é incompatível com arte e conhecimentos sérios.
Hoje, na ópera, teatro, galerias de arte, nas reuniões profissionais nas universidades, aqueles valores culturais que a CIA promoveu na guerra fria cultural são visíveis: quem ousará dizer que o rei está nu?”
O Financiamento da ClA para promover a cultura apolítica
Por James Petras

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Palavras de Nelson Rockfeller na inauguração do MASP:
“We recognized the humanistic value of abstract art, as an expression of
thought and emotion and the basic human aspiration [....] 
We reject the
assumption that art which is aesthetically an innovation. Must somehow
to be socially or politically subversive and therefore un-American [...] We
recall that the nazis suppressed the modern art branding it degenerate
[...] and the soviet suppressed modern art as formalistic , bourgeoisie”

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